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FRIDAY EATS

A refeição que pedala a rua à minha frente vai saciar o cansaço de alguém que trocou horas de fome por uns tostões. A energia que sobra é a da ponta dos dedos. Três toques no ecrã e o jantar está pronto. A marmita verde atravessa a cidade, pela força estoica do homem que não fala português. Também não precisa. Basta tocar à campainha e dizer a palavra mágica de significado universal. Num silêncio solene, digno de um requintado mordomo, abre o saco térmico e serve o jantar. O pobre senhor que ganha uns tostões, hoje sente-se um rei. Espreguiçado no sofá, a lambuzar-se num menu cancerígeno qualquer, reencontra um espasmo de felicidade. Ah, como é boa a sexta-feira! Mham 
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LADAINHA DO MASCULINO INVERTIDO

Não te quero ter mas não te quero perder.  Sou um homem sério mas não quero nada a sério. Não me chames criança só porque eu me comporto como tal. Deixa de ser assim, tão querida e amorosa, que já estava habituado a ser maltratado pela minha ex. Para de ler tantos livros que fazes aumentar a minha ignorância. Se precisares de um ombro, chama o vizinho. Outra vez essa conversa? Lá por eu ser um parvalhão, não precisas ser tão chata. Não tenho nada para te dar, escusas de dizer que só me queres a mim. Tu mereces alguém melhor do que eu, só que não vais encontrar. 

PERTENÇA VIRTUAL

Apaixonaram-se ao primeiro clique.  No início, tudo tinha a leveza eufórica da novidade. Tudo tinha o ingénuo encanto do desconhecido. Enquanto deslindavam os detalhes virtuosos da vida privada um do outro, em mensagens infinitas, contemplavam-se teclando, trocando imagens e palavras e emojis. Foram dias áureos de expectativa crescente. Quando será o nosso encontro real? A magia começava a desvanecer-se ao surgir a questão. Alguém não deseja abdicar do perfeccionismo platónico. Camuflados na virtualidade somos todos muito bons. Para quê sair do casulo para dar a conhecer o pior de nós? O melhor é encerrar o assunto enquanto ainda paira a beleza inicial. Um vai-se esfumando e saí de mansinho. As respostas chegam cada vez mais demoradas até não chegarem mais. Encontros românticos são para gente corajosa na vida real. O que aconteceu aqui foi só uma ilusão. A ludibriosa crença de ser possível uma pertença virtual.  (Publicado na revista ESPÚRIA, outubro 2023)

CIBERLOVE

As pessoas tornaram-se descartáveis. Hoje gostam-se, amanhã já não. Na era do ciberlove , tudo é demasiado fast e os corações parecem ter botão on-off . Ninguém namora, todos ficam, e o entusiasmo da novidade dura apenas o tempo de um scroll . 

SUSTENTO FELIZ

São íngremes os trilhos dos que almejam um sustento feliz. O dinheiro enche os bolsos mas a realização alimenta a alma. Desalentados os que se arrastam carregando o fardo de um ofício que não enriquece nem faz sorrir. O trabalho ideal será sempre aquele que alinha a individualidade dos talentos com as múltiplas necessidades do servir à humanidade. 

ANTES E DEPOIS DE MIM

"Se um dia o sol explodir, ninguém saberá que Vergílio escreveu a Eneida". A frase de Saramago, ressoa dentro de mim, desde o documentário "José e Pilar". Tudo o que fazemos vai desfazer-se. Tudo o que escrevemos vai apagar-se. Os livros podem arder, o digital colapsar, a memória perder-se no infinito do tempo. Porque escrevemos afinal? Masoquismo, talvez? Ou pura incapacidade de nos saciarmos com a experiência de existir. Só sei que este vício de trocar tudo por palavras já nasceu comigo. Comecei logo no útero materno a magicar como haveria de contar a metaformose a que me sujeitei para aqui chegar: humana, imperfeita, gemendo de dores e dúvidas e medos, sempre a sonhar com uma felicidade que nunca chega. Valham-me os livros que me têm salvo a existência no deleite de cada página. Abençoadas sejam as palavras que me permitem descodificar o significado de tantos dias abstratos. Louvada seja a palavra escrita, capaz de dissolver as mágoas e perpetuar o eco feliz das

BEIJO MOLHADO

De repente, éramos só nós, à chuva, no meio da estrada. O tempo parou na hora certa dos encontros imprevistos. Pareceu-me ouvir música e o sapateado sorridente do Fred Astaire, quando te perguntei: Vieste dançar comigo à chuva? Não, vim beijar-te à chuva! Prolongou-se um silêncio. E quando voltámos a abrir os olhos, o céu era um arco-íris e nós o sol renascido da tempestade.