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Apagar o rasto do ano velho, deixar entrar o ano novo

Nestes últimos dias do ano tenho sempre a mesma sensação. Há uma emergência que paira no ar e na atitude das pessoas. Há uma ânsia colectiva focada no desejo de que o ano velho se vá embora depressa e leve consigo tudo o que de mau aconteceu. Em simultâneo, parece haver em cada pessoa (e eu não sou excepção) a doce ilusão de que naquele limiar entre a 11ª e a 12ª badalada tudo vá renascer. E ao acordar, na manhã tardia do dia 1 de Janeiro, damo-nos conta que tudo não passou disso mesmo – uma ténue, muito ligeira mesmo, ilusão. Mas vale pela festa. Mesmo aquela que se faz sem sair de casa, ao ritmo dos anúncios da TV. Vale pelas horas de descompressão cerebral, entre um e outro flute de champanhe (ou espumante, conforme a disponibilidade). Vale uma ou outra gargalhada que acaba por se soltar, nem que seja com a anedota do avô ou de algum velhote que passe o ano ao nosso lado. Vale sempre pela esperança de que uma mudança magnética súbita vá redireccionar as nossas vidas, colocando-as por fim no rumo certo.
Mas antes, deixem-nos arrumar gavetas e rasgar papéis. Renovar dossiers e arquivar as pastas do Outlook. Deixem-nos enviar um milhão e meio de e-mails e sms e colocar sequências incansáveis de posts nas redes sociais, como se nos estivéssemos a despedir dos nossos amigos velhos, que amanhã já vão ser outros – renovados, renascidos, tal como o ano que aí vem. “Adeus, até para o ano!” – oiço por aí. E rio-me. Parece que alguém vai fazer uma longa viagem com retorno previsto para uma data a perder de vista. Que doce ilusão esta a do Ano Novo. Mas eu gosto dela, ainda assim, por isso vou gozá-la. Só porque me apetece. Adeus 2010. Até já 2011. Prometo voltar com palavras frescas muito em breve.

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