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A mostrar mensagens de 2012

Primeiro de Janeiro

Estejas onde estiveres, assistirás aos mesmos rituais. Ao vivo ou através da televisão, um coro de vozes em contagem decrescente, descerá uma escadaria imaginária que separa o número dez do zero. Nesse preciso instante, será meia-noite. Doze badaladas de um relógio qualquer vão anunciar ao mundo que está prestes a começar a primeira hora do primeiro dia do primeiro mês de um novo ano. Alguém terá uma garrafa na mão e não tardará uma rolha de cortiça libertar-se-á num estalido seco atravessando o ar sem que ninguém saiba onde vai parar. Rostos subitamente iluminados por uma felicidade sem razão exclamarão vivas e trocarão beijos e abraços e votos de dias felizes, por entre goles de espumante ou champanhe. Os flutes preenchidos pelo líquido dourado e borbulhante elevar-se-ão várias vezes, tilintando uns nos outros em múltiplos brindes de braços entrecruzados. Sentirás na boca um gosto amargo que aos poucos será mais doce e mais doce e mais doce e caminharás rumo a um ponto onde possas

O regresso da mana Bia

Já não me lembro do dia em que partiste para o Brasil. Tinha eu quinze anos. Entretanto, passou toda uma vida. Tenho uma vaga ideia, memórias soltas, esfumadas pelo esquecimento que a passagem dos anos nos vai impondo. Agora que tenho vagar, não são poucas as vezes que me sento, a velha caixa de sapatos sobre o colo, as mãos enrugadas folheando memórias como se fossem restos de ti, sobras da vida que não vivemos juntas. Eu cá, tu lá. Eu em Portugal. Tu no Brasil. Entre nós um Oceano de saudade. Casei-me pouco depois da tua partida. A nossa mãe, viúva, convenceu-me de que seria o melhor para mim. Até hoje, mana, duvido que as mães tenham sempre razão naquilo que dizem. Mas, ao menos, não fiquei desamparada como receava a nossa mãe. Até hoje, tenho ao meu lado um homem que me preenche os dias. Ainda que quase só de arrelias. Fomos sabendo uma da outra por carta. Era uma euforia sempre que abria a caixa do correio e via aquele envelope branco, riscado a azul e vermelho no rebordo, marca

A noite de toda a vida

Havia dias que não trocavam uma só palavra. Comunicavam por gestos, monossílabos quase imperceptíveis, fazendo um enorme esforço para que nem os olhares se cruzassem. Estavam desavindos, de sentimentos às avessas, magoados por excessos de palavras que nunca deveriam ter dito. Depois de tantas e tantas discussões, reinava entre eles um silêncio de morte, um vácuo que encerrava uma dor profunda. Quando voltavam as costas, cada um para seu lado, não eram capazes de conter o choro. Um aperto no peito parecia ser capaz de espremer o coração que pouco a pouco se dissolvia em água. Nem um, nem outro avistavam futuro para além do dia de amanhã. Apesar de não o desejar de forma alguma, cada um à sua maneira estava certo que tudo o que um dia os unira teria chegado ao fim. E a sensação de nunca mais era insuportável. Nunca mais te vou beijar. Nunca mais te vou sentir. Nunca mais vou poder acreditar que haja o que houver ficaremos juntos para sempre. Nunca mais… Ambos estavam longe de imaginar

As intermitências do sentir

Os sentimentos são como as ondas do mar. Por vezes recuam, partem, libertam-se de nós e vão com vontade própria, como se nunca nos tivessem pertencido. E voltam, quando já não os esperávamos, quando já não tínhamos lugar reservado para eles. Tal como uma onda forte, rebentam sobre nós num turbilhão, podendo até derrubar-nos. Depois, voltam atrás e regressam já mais suaves, como uma carícia de espuma que apenas cobre a pele ao de leve. Há dias em que o mar está chão. Nesses dias reencontramos a paz, a doce tranquilidade de não sentir. No dia seguinte, sem aviso nem previsão possível, um marmoto. Ondas gigantes de sentimentos que nos abalam como um sismo, que fazem estremecer os pilares da nossa existência. Amar como uma onda que vai e vem, numa valsa sensual de areia e água, elementos apaixonados que se misturam mas não se podem dissolver, acabando por separar-se sempre. Os sentimentos são como as ondas do mar. Nascem de parte incerta, das profundezas de um oceano qualquer, de um pon

Utopia

Há uma definição que ouvi há dias que não me sai da cabeça. Alguém terá dito que a utopia é como um horizonte: damos dez passos e ela afasta-se, damos mais dez, tentando aproximarmo-nos, e ela volta a afastar-se. É como um jogo do “toca e foge”, que nunca terá fim. Tal como o horizonte, a utopia é uma linha imaginária que conseguimos visualizar mas jamais poderemos tocar. Funciona porém como a cenoura atrás da qual o burro corre. A cenoura é uma qualquer utopia. O burro somos nós. Se bem que na história do burro, se o animal for persistente que baste, poderá a dada altura alcançar a cenoura e trincá-la a seu bel-prazer, celebrando vitória pela conquista do objecto desejado. Na vida dos seres humanos, aquela que se conveio designar por vida em sociedade, podem existir tantas utopias quantas mentes haja ávidas de sonhar. Se o sonho comanda a vida, como dizia o poeta, a utopia comanda a vontade de acreditar que todos os sonhos podem tornar-se realidade, mesmo que na verdade não possam.

O dia em que nasci

Maternidade Alfredo da Costa (MAC), Lisboa, 29 de Setembro de 1979 O mundo atravessa o ano de 1979, os calendários permanecem suspensos no mês de Setembro, enquanto a minha mãe percorre os corredores da maternidade, ainda sem saber se será menino ou menina. Já passa do tempo e eu pareço teimar em não querer nascer. Por isso, naquele dia, sou obrigada a fazê-lo à força. Naquela tarde de finais de Setembro, é uma parteira amiga da minha mãe que a conduz a Lisboa. Ainda em casa, dá-lhe uma injecção para induzir o parto, antes de a levar para o carro onde põe a tocar uma cassete de fados. É o choro das guitarras que há-de embalar a dor das primeiras contracções. Ao passar a ponte, ao cruzar o Tejo, enquanto acaricia a enorme barriga como se fosse já um bebé, a minha mãe tem mil sonhos para mim. Todos os seus pensamentos são bons. Todos os seus sonhos são possíveis. Naquele instante de infinito, ela carrega no ventre uma explosão de energia prestes a acontecer. Uma nova pessoa, uma no

Noventa dias felizes

Volto à superfície com a urgência de uma golfada de ar. A minha cabeça irrompe da água numa aflição. Liberto a respiração, abrindo a boca e os olhos. Num gesto mecânico, passo as duas mãos pelos cabelos molhados, como se os pudesse pentear. Viro-me para terra e tudo o que vejo são restos de mais um Verão que passou: gente e mais gente, uma mancha de toalhas de todas as cores, chapéus e chapéus-de-sol que inundam um areal a perder de vista. O mesmo areal que daqui a dias não será mais que um deserto. Os grãos de areia vão sentir falta de tudo isto: dos corpos jovens, verdes, viçosos, como tenros rebentos, firmes troncos; dos corpos mais velhos, maduros, cheios de polpa, gelatinosos, desmazelados mas confiantes; dos idosos que, antes das nove, como se o mar fosse um patrão, como se o areal os aguardasse com a hora marcada de um emprego, já assentaram arraiais; das peles quentes, ardentes, suadas, salgadas, temperadas, implorando um beijo doce; saudades do aroma a creme de coco que se e

Bela adormecida

Era uma noite de janelas abertas e muita falta de ar. Ela deambulava pela casa suspirante, sem rumo certo, ora pelo corredor, ora pelo quarto, ora pela sala, sem encontrar o poiso certo. Era como se lhe apetecesse algo que não tem nome, que não se entende, que não se pode explicar. Um lugar, um objecto, uma pessoa? Ou talvez nada. Ou talvez um pouco de tudo isso. Era como se tudo tivesse e ainda assim tudo lhe faltasse. Tinha talvez o essencial. Talvez lhe faltasse o acessório. Aquela, a tal, a peça fundamental para completar o puzzle tantas vezes imaginado em sonhos. Sonhos secretos. Ligou a TV. Percorreu todos os canais. E nada. Tentou a aparelhagem. Na rádio não conseguiu sintonizar-se com qualquer melodia. Pegou num livro. Folheou. Cheirou o rasto do restolhar das páginas. Desistiu antes de começar. Esquecia-se da segunda palavra antes de fixar os olhos na terceira. Toda a sua atenção estava desfocada por ideias desalinhadas que se entrecruzavam aleatoriamente. Na cabeça, milhare

Tempo para viver

Um dia vendo o carro e a casa e mudo de vida. É só uma questão de coragem. Audácia para abdicar deste conforto que me paralisa os sentidos. Não sei o que é ter fome ou frio. A cama onde me deito não me faz doer os ossos. Tenho o armário cheio de roupa e ainda assim julgo ter tão pouco, quase nada para vestir. Os orientais é que têm razão: no ocidente passamos a vida a preparar-nos para a vida. Suportamos horas intermináveis de trabalhos infelizes porque temos um sonho. Porque temos muitos sonhos. E porque onde acaba um começa outro e todos se podem comprar. Há muito que deixámos de sonhar sonhos que não se vendem, que não há nas lojas, que não se podem trazer para casa por serem demasiado grandes, porque vivem na rua, lá fora onde deixámos de os procurar. Andamos todos tão distraídos com as nossas vidinhas fúteis, inúteis, comezinhas. Trabalhamos tanto para que nada nos falte que acaba por nos faltar o que mais falta nos faz: energia para desfrutar. Perdemos a vontade de acordar cedo s

Conto "Choque frontal" - página 10

Eu não morri, por isso tornei-me mais forte. E, contrariando todos os médicos nos seus piores vaticínios, voltei a andar pelo meu próprio pé, pouco mais de um ano após o acidente. Também voltei a conduzir. Comprei um carro novo e afoitei-me logo à estrada, recusando-me prontamente a guardar qualquer espécie de trauma. Em vez de traumatizado, fiquei foi frustrado por tudo aquilo que deixei de poder fazer. Por inúmeras vezes, dei comigo a sonhar acordado: recordava aquele jovem atlético que corria na praia cortando o vento, que praticava judo derrubando astutamente o adversário, que podia dançar toda a noite nos bailes de Verão, que tinha duas pernas ágeis e saudáveis que o poderiam transportar velozmente mundo fora. Depois, olhava-me ao espelho e era apenas o reflexo de um homem sofrido a coxear rumo à velhice, apoiado por uma bota ortopédica compensada e uma muleta. FIM

Conto "Choque frontal" - página 9

- Sr. Eusébio, é hoje o grande dia! Vamos lá pôr de pé e dar uns passinhos. Senti automaticamente um nervoso miudinho, medo e adrenalina misturados numa emoção que me atravessava o corpo. Era como se fosse aprender a dar os primeiros passos e não tivesse a certeza de ser capaz de o fazer. Com o apoio de um andarilho, consegui manter-me em pé. A força com que os meus braços agarravam o metal era tanta que todo o corpo parecia estremecer. O impulso que se seguiu fez-me dar um passo em frente. A família aplaudiu emocionada. Até os olhos do fisioterapeuta deixaram transparecer uma emoção feita de vitória. Aquele foi o primeiro passo do resto da minha vida. Não tardei em poder descer o elevador para ir tomar o café à rua. Já não suportava a bica fria que me traziam diariamente tapada com o pires. A tentativa era boa, mas não resultava. O café estava invariavelmente frio quando me tocava os lábios. Sentava-me perto do balcão e conseguia automaticamente perceber surpresa e curiosidade nos o

Conto "Choque frontal" - página 8

Regressei a casa já num novo ano. Como a maca convencional não cabia no elevador, tive que ser transportado a ombros pelos bombeiros numa maca móvel feita de pano. Quando chegaram ao sexto andar, os dois homens estavam extenuados e eu contorcia-me com dores. A proximidade da minha cama parecia uma miragem. Quando por fim me instalaram numa posição confortável, senti-me aliviado. Aquele quarto passou a ser todo o meu mundo durante os meses que se seguiram. O cheiro a feridas ainda em sangue foi-se entranhando, primeiro na roupa, depois nos móveis, por fim um pouco por toda a casa, até ser aceite por toda a família como normal. Eu era um acamado, palavra horrível para quem diz, pior ainda para quem sente. Sempre me intrigou como seria a vida sexual de um paraplégico. Infelizmente, não tardei em tornar-me especialista na matéria. Eu e a minha mulher tentámos retomar o contacto físico, logo que as dores no corpo se tornaram suportáveis. Ela estava bem mais hesitante que eu. Temia que qual

Conto "Choque frontal" - página 7

Depois, rezava. Ao contrário de mim, ela tinha uma fé inabalável. Sucumbia ao cansaço e acabava por adormecer, sempre de luz acesa, confidenciou-me mais tarde. Só quando deixei de correr perigo de vida é que fui transferido para o hospital da minha área de residência. No hospital de Faro, os meus filhos aguardavam, ansiosos, o nosso reencontro. Uma visita de cada vez, primeiro entrou a minha mulher, depois o meu filho e, por fim, a minha filha. Foi ela a única capaz de me contar mais tarde o que sentiu ao ver-me naquele estado. Disse-me que estava desfigurado, meio amarelado e fez-lhe imensa confusão ver-me sem óculos e sem dentes. Até a placa que eu usava na altura ficou danificada devido ao acidente. Segundo me disse, como não conseguia falar muito, fiz-lhe festas na mão que ela apoiara sobre a cama. E ficámos ali, escassos minutos, somente a contemplar o olhar um do outro, como se em silêncio fossemos capazes de dizer todo o amor que sentíamos. Os dias pareciam an

Conto "Choque frontal" - página 6

Entretanto, os dias no hospital passavam com um vagar pintado de infância. Sem as habituais obrigações, horários, prazos e tarefas urgentes por cumprir, consegui aperceber-me de que todos os dias têm efectivamente vinte e quatro horas, suave e lentamente contadas pelo ponteiro dos segundos que pacientemente se arrasta aos tremeliques, milhares de vezes ao longo do dia, contornando em movimentos circulares todos os números e tracinhos desenhados no relógio. As rotinas eram fixadas pela sequência de rituais que se sucediam dia após dia, após dia. Logo pela manhã, o aproximar de um tilintar metálico proveniente do corredor anunciava a chegada do pequeno-almoço. Um copo de leite morno e uma carcaça com manteiga, um menu que se repetia a meio da tarde, à hora do lanche. Quando voltei a ter apetite, estas eram as minhas refeições preferidas. Se me fosse permitido, abdicaria do almoço e do jantar, compostos habitualmente por um caldo deslavado a que chamavam sopa e um prato de carne ou peixe

Conto "Choque frontal" - página 5

- Sr. Eusébio, já acordou? – Irrompeu uma voz feminina quarto adentro. Enquanto pestanejava, esforçando-me por permanecer com os olhos abertos, vislumbrei uma mulher loira de bata branca. A enfermeira Elsa era uma jovem na casa dos trinta anos, com bons modos e muito bom aspecto. Saudei a sua presença com um gemido, a única forma confortável de me manifestar. E ela continuou a fazer-me perguntas de circunstância, sabendo de antemão que as respostas seriam pouco mais que lamentos monossilábicos. - Então, como é que se sente? Está com dores? Quer que lhe molhe os lábios? Eu assenti piscando os olhos repetidamente como se quisesse acenar com a cabeça. Tinha a boca tão seca que até a língua parecia feita de borracha. Delicadamente, ela mergulhou dentro de um copo de água a compressa enrolada num pauzinho de madeira e começou a humedecer-me os lábios. Ia começar a fazer um esforço para tentar falar quando ela me dissuadiu: - Não se canse, Sr. Eusébio. Procure descansar. Não se preocupe qu

Conto "Choque frontal" - página 4

Imagino como deve ter reagido, ela que é tão nervosa. Pensou logo no pior, quando lhe confirmaram que eu estava nos cuidados intensivos do hospital de Beja. O que se seguiu foi toda uma família em alvoroço. Desesperada, desfeita em lágrimas, a minha mulher não tardou em buscar conforto junto de amigos chegados. Foram eles que conduziram o carro que em pouco tempo partiu acelerado rumo ao Alentejo. Lá dentro iam também os meus filhos, dois adolescentes, um rapaz e uma rapariga carregando um silêncio com sintomas de orfandade. Naquele dia, Maria e Manuel tinham, respectivamente, dezasseis e catorze anos. Eram uns miúdos porreiros, aliás, são uns miúdos porreiros estes meus filhos. Quando mais tarde tive consciência que podia tê-los deixado desamparados, que podia nunca mais tê-los visto, senti uma dor no peito. Nesse dia, pela primeira vez depois do que me aconteceu, chorei. Não sei ao certo quantas horas estive inconsciente. Apenas sei que foi o tempo suficiente para avistar a mítica l

Conto "Choque frontal" - página 3

Muito antes dos bombeiros chegarem ao local, houve alguém que, sem querer, acabou por ser a primeira testemunha do sinistro. Soube mais tarde que era um homem e que, para minha sorte, era médico. Não teria sobrevivido até à chegada do socorro se aquela alma não se tivesse cruzado no meu caminho. Diz ele que, por estar em choque, eu estava a sufocar com a língua. Foi ele quem ma desenrolou evitando a asfixia. Se fosse crente, teria ficado a pensar que aquele homem foi um anjo que desceu à terra naquele instante para me salvar. Um minuto a mais poderia ter feito toda a diferença. Nos momentos que sucederam o acidente, muitos foram os carros que tiveram de parar junto à berma, imagino. Os destroços estavam de tal forma atravessados na via que não permitiam a passagem de qualquer veículo. A curiosidade mórbida foi-se aproximando. Sou capaz de imaginar quantas pessoas terão saído do carro para me espreitar, para assistir ao vivo à (minha) tragédia humana. Exposto como um espantalho, não esp

Conto "Choque frontal" - página 2

À minha esquerda, do lado de fora da janela estilhaçada, um homem de capacete amarelo sabia o meu nome, apesar de eu não o conhecer. Por que raio haveria de querer falar comigo? E a voz voltava, sumida, longínqua, como um eco que ressoa no fundo de um poço. - Sr. Eusébio, tenha calma, que já o vamos tirar daí. Minto se afirmar que me lembro de todos estes pormenores. Talvez seja apenas o meu inconsciente a falar mais alto. Quem sabe, tudo o que julgo lembrar-me não seja mais do que um amontoado de memórias fabricadas pelas centenas de vezes que já ouvi da boca de outros a minha própria história. Dentro de mim, continuam a ecoar perguntas às quais ninguém me sabe responder: Porquê eu? Como é que aquele acidente me pôde acontecer. Nem Deus, nem nenhum santinho me havia de dar resposta até hoje. Naquela manhã de sábado, eu era ateu. E nem o que dizem ter sido um milagre me fez mudar de ideias. Prefiro acreditar que podemos ter sete vidas como os gatos. O pior é que, feitas bem as contas,

Conto "Choque frontal" - página 1

Naquela manhã, quando saí de casa, nunca imaginei que pudesse não regressar ao anoitecer. Às seis e meia daquele sábado, chovia torrencialmente quando o toque irritante do despertador de corda me fez abrir os olhos. Para meu espanto, perante tamanho ruído, lá em casa mais ninguém acordou. Ao meu lado, na cama, a minha mulher dormia com gosto. O seu rosto não exibia qualquer ruga, a sua mente adormecida não conseguia antever qualquer sobressalto iminente. Continuava a dormir e a sonhar que ainda podíamos ser felizes para sempre. Naquela manhã de Novembro, faltava um mês para o Natal. E os meus filhos, que ficaram a dormir quando sai de casa, não podiam sequer imaginar que iriam passar a consoada num local completamente diferente do habitual. Lamento profundamente nunca ter sido dado a manifestações espontâneas de carinho. Hoje, ainda me lamento por nessa manhã ter seguido viagem sem lhes dar um beijo. A minha mulher e os meus filhos haveriam de ter gostado que me despedisse deles. Tive

Olá minha querida!

Passávamos tardes inteiras a conversar e a beber chá. Eram sempre tardes de Domingo, fosse Verão ou Inverno. Eram sempre tardes em que eu poderia estar em qualquer outro lado a fazer qualquer outra coisa, mas preferia estar ali. A sua companhia fazia-me bem. Eu podia combinar o encontro, ou aparecer de surpresa, que ela estava sempre lá à minha espera. Tocava à campainha e podia ter que esperar mais de um minuto até que a porta se abrisse. Durante esse compasso de espera, podia imaginá-la a caminhar a custo pelo corredor. Ao contrário do cérebro, há muito que o corpo começara a sucumbir ao peso da idade. Afinal já são 91 quilos, dizia ela com graça, referindo-se aos seus longos anos de vida. Recebia-me sempre com o afecto maternal com que sabia tratar toda a gente. Talvez por nunca ter sido mãe, tinha o gesto espontâneo de adoptar todos os que lhe eram queridos. Partilhava afecto com o mesmo à vontade com que distribuía tudo o que tinha. Sem agenda, nem os lembretes electrónicos dos t

Cibernóia

Na sala de espera, Diogo impacienta-se com a demora. É proibido fumar. Roer as unhas em público não é de bom-tom. Está sentado num sofá demasiado mole forrado a napa. Cruza e descruza as pernas, estala os dedos das mãos, respira fundo, vezes sem conta. E a porta do consultório continua fechada. Ao pensar na razão que o trouxe ali, um nervoso miudinho aloja-se no estômago e chega a pensar em desistir. Finta a porta de saída e está já a equacionar a fuga quando a recepcionista, após receber uma chamada telefónica, o chama: - Sr. Diogo, vamos? Ao levantar-se para o acompanhar até à porta do consultório, a recepcionista revela-se em toda a sua beleza: é alta, elegante e os seus cabelos longos e negros libertam, à sua passagem, um doce aroma floral. Dá dois toques na madeira com os nós dos dedos, antes de girar o puxador gentilmente. A porta abre-se deixando antever um homem de óculos semi-careca. Está sentado a uma secretária de estilo moderno e, sem desviar o olhar dos papéis onde está

O presente

Enquanto se queima um cigarro no sereno, sobra tempo para rever o dia que ficou para trás como uma página virada. A manhã começou bem cedo com a euforia que antecede uma festa. O Luís faz seis anos e todos os colegas da sala estão convidados. Para muitos uma festa de aniversário já não é novidade, mas há uma menina estreante nestas andanças que não consegue esconder o entusiasmo latente. Passeia-se pela casa de saco na mão, impaciente pela chegada da hora. “Ó mãe, vamos já?”. A mãe responde que é só mais à tardinha, à hora do lanche. No interior do saco há um presente escondido pelo papel de embrulho: uma surpresa para o Luís. Será que vai gostar? A menina questiona-se, curiosa por saber o que sairá lá de dentro, como se a prenda fosse também para ela. Todas as crianças adoram presentes. Como se nunca tivessem deixado de ser crianças, todos os adultos adoram presentes, mas habituaram-se a dizer que “não era preciso nada”. Era pois. Afinal, cada dia é uma dádiva, daí que lhe chamemos

1º de Maio

Saímos de casa cedo, ainda pela fresquinha. Há um ânimo de férias no ar. Hoje não há escola, hoje não vamos trabalhar. É feriado e temos o dia todo por nossa conta. Como é bom ter vagar. O carro vai cheio. Vai cheio de gente, cheio de conversa solta, cheio de gargalhadas que nos saem por tudo e por nada. Rimos juntos. Trocamos sorrisos pelo retrovisor. Hoje estamos felizes. Pais, filhos, avós e netos, distraídos pela paisagem que a alta velocidade passa por nós, nem nos damos conta da perfeição do momento. Vamos passar um dia diferente, noutra terra, com outra gente. Vamos andar de mãos dadas para não nos perdermos. Vamos conciliar estômagos famintos num mesmo horário, para nos sentarmos à mesa e pedir a ementa. Vamos todos escolher uma comida de que gostamos, não vamos obrigar ninguém a comer sopa, nem brócolos. Hoje é dia de folga, à mesa não há lugar para discussões. Todos mastigamos com gosto, levamos cada garfada à boca com uma satisfação feita de apetite. Ainda comemos em resta

Joe Black

Lá fora, o vento uiva desenfreado. Numa ira de força transparente, empurra sem piedade tudo o que se atravessa no caminho. As árvores vergam-se à sua passagem, como se numa vénia lhe concedessem obediência. O pó, feito de terra, de areia, de vestígios de erosão, passeia-se num voo que atravessa o próprio ar em ziguezagues, por vezes interrompidos por uma pausa repousada num canto qualquer. As nuvens também parecem zangadas, ficam cinzentas de raiva por não poderem repousar em paz. Nem no céu parece haver descanso. Indeciso, sem saber como se comportar, o Sol esconde-se envergonhado. Vai espreitando, introvertido, deixando escapar tímidos raios de luz por entre a espessura branda das nuvens. Os corpos que já pedem praia guardam-se em casa em lamentos resignados. Os rostos, como um espelho, reflectem a cor do dia. Semblantes cinzentos cruzam-se nas ruas, cabisbaixos. A chuva, que tanta falta faz, avança e recua hesitante, enviada a conta-gotas pela mãe natureza. Está tanto vento, mas n

Esta terra que me acolhe

Quantas vezes o sítio onde vivemos não é escolha mas destino? Soma de contas mal feitas, adições ou subtracções mal resolvidas, erros de cálculo, opções que sobram nos destroços, no entulho que resta de tudo o que um dia idealizámos. E aprendemos a aceitar. Que remédio. A adaptação fica-nos tão bem. É um fato engomado que nos assenta sempre bem. Adaptar-nos é a última das sortes, mesmo quando a vontade não vem, nem com o passar do tempo. O tempo, o tempo. Com ele acabamos por aceitar tudo, até a morte que sabemos certa e que nos espera a todos sem segunda opção. Hoje o vento não me está de feição. Nem esta paz fluvial que traz cheiro a maresia é capaz de me aquietar os sentidos. Da minha janela ao mar são poucos quilómetros. E isso poderia bastar-me para sorrir. O sol que raia lá fora a espaços por entre as nuvens que dançam em seu redor poderia bastar-me. O vento que passa, que assobia vaidoso poderia bastar-me. Por aqui, não há filas de carros a buzinarem-me aos ouvidos. Não há d

Companhia virtual

Eu estou aqui. E tu estás aí. Estás a ler-me? Então não estás só. Do outro lado da janela virtual, há uma mão que percorre as teclas em busca de companhia. Se o sono teima em não aparecer, na virtualidade do momento, podes enviar-me uma mensagem. Basta dizeres, “Olá, estou aqui!”. Do outro lado, à espreita, eu sou real, posso responder-te. E há toda uma cortina de esperança que se abre, um vazio de emoções que se preenche, um coração que se aquieta por encontrar um mesmo compasso. Não te conheço, não sei quem és, nem o que tens feito no mundo real. Mas tens um ar simpático. Deves ser boa pessoa, eu não tenho por hábito simpatizar com qualquer um. Gostava de saber como és. Qual é a imagem que se esconde atrás desta página em branco manchada de letras negras. Podes estar de pijama e chinelos, que eu nunca irei saber. Podes estar a fumar, a beber, podes estar até a tirar macacos do nariz, que eu, prometo, não me vou rir. Podes até estar nu, andar à vontade pela casa tal qual vieste ao m

Na fronteira

O Guadiana tem dois amores, duas margens que podem acenar-se, que podem trocar saudações em línguas diferentes. São dois países separados por um rio, unidos por um ferry, há uns anos também por uma ponte. Num abraço de betão estreitaram-se as margens, português e castelhano misturam-se muito mais desde então, num cocktail de vozes que não deixam as ruas silenciar-se. La chica que habla español chama-se Ayamonte. É uma terra pacata, onde os sábados despertam com a euforia do mercado. Bancadas de legumes alinhados por cores enchem os olhos de apetite. Enormes peças de pescado ainda a saltar de fresco são um convite ao convívio em redor do fogareiro. E há a carne, um regalo às pupilas, um deleite para as papilas: el cordero , el cerdo , la ternera . Nas esplanadas, a qualquer hora do dia, bebem-se cañas e picam-se tapas. E no vagar do fim-de-semana repara-se nos pés calçados de novo da senhora que acabou de sair da mítica sapataria de esquina. Nas gasolineiras, de manhã à noite, há sem

Quatro Primaveras

Sou tua mãe mas não te vi nascer. Pode parecer estranho, mas foi assim que aconteceu. Há quatro anos, era de noite. Ainda não era Primavera, mas estava um clima ameno, primaveril. No relógio de parede, o ponteiro pequeno estava fixo no número um e o grande apontava para o oito. Eram uma e quarenta da manhã de terça-feira, dia 11 de Março de 2008. Quando choraste pela primeira vez, eu não te ouvi. Ferrada num sono profundo, não te ouvi, nem te vi, nem peguei em ti ao colo, nem chorei de felicidade por sentir uma emoção nova, tão rara, que pode acontecer uma única vez, ou poucas vezes na vida. Lamento não ter sentido as dores. Lamento, ainda mais, não ter conhecido a explosão de emoções que as sucedem. Estava anestesiada, esventrada e longe do meu bebé. Lamento tudo isso, mas sei que foi por bem. Os corpos escondidos por detrás de todas aquelas batas brancas, sem nome, sem voz, quase sem rosto, salvaram-te a vida. Bendita seja a medicina. Despertei nauseada, horas depois. De um lado, e

Quantos quilómetros tem uma vida?

Partida. Caminhas só no meio da multidão, isolada nos teus pensamentos. Esses anónimos não te dizem nada. Apenas guiam os teus passos como um traço contínuo, confirmando o trilho a seguir. Em jeito de distracção, decides prestar atenção aos sons que te rodeiam. Um exército de pés, passos ritmados, passos pesados, esmigalham calhaus derramados pelo tempo sobre a terra batida. Um ruído de bocas a mastigar cereais crocantes vai ecoando. As pedras rolam, as pernas rolam, vai rolando a distância debaixo dos pés. O que te move? Saberes-te capaz de atingir uma meta, de cumprir uma etapa, de chegar ao fim de um caminho qualquer. Lá ao longe, bem ao fundo, avistas o cerro. Nuvens cinzentas pairam sobre ele, cobrem-no de sombra. Circulam, parecem querer dançar: a dança da chuva. O teu coração acelera ao ritmo do cansaço. Mais uma subida ofegante. Inspiras agora a plenos pulmões e consegues farejar os odores da manhã campestre. Há ervas que libertam um cheiro verde húmido. Narinas adentro, entr

Desastre celular

Caminhava completamente desengonçado, como se cada um dos ossos fosse mais disforme que o próprio rosto. Rente à estrada, debaixo de um céu pesado, carregado de chuva, caminhava de mochila às costas, meio rapaz, meio homem, meio monstro, sem idade certa. De repente, hesita o passo, pára, parece querer precipitar-se sobre a estrada. Por instantes chego a temer um suicídio. Falso alarme. Ele trava. Com olhar de louco, absorve de uma rajada todo o quarteirão. Estranho ser, carregando sobre os ombros o peso de tamanha fealdade, carga maior que a da mochila que se adivinha meio vazia. Esta figura (im)perfeita de contos de meia-noite, segue viagem, estrada fora, perco-lhe o rasto, fica-me apenas a memória. Jamais esquecerei ter visto um ser humano de traços tão contraditórios. Só por capricho, apetece-me afrontar a crença: feitos à imagem e semelhança do Senhor? Se assim fosse, porquê existir a perfeição e a aberração, o belo e o mostrengo e permitir que ambos se cruzem e convivam até ao p

Dá-me colo

Sensação boa a cumplicidade que se estabelece com alguém que está doente. Ficamos um degrau acima, num nível superlativo de superioridade, mas na aflição tudo se estreita, sobretudo os laços entre as pessoas. E se eu for a mãe e a pessoa doente o meu filho, o colo alarga-se, capaz de acolher o mundo. Encontra-se tempo que não existe, debaixo das mantas às quatro da tarde. Surreal ver o mundo correr lá fora, numa miragem espreitada da janela do quarto. Dentro de casa, as horas esticam, ficam gigantes. Há mais minutos, muitas vezes sessenta, numa só hora longe do trabalho, à distância dos esforços que pedem pressa. Todos os filhos são bebés quando estão doentes. Mesmo que tenham 30 ou 40 anos, naquele momento voltam a ter fraldas e faces rosadas e cheirinho de leite morno. E revelam-se em nós talentos escondidos. De repente, somos exímios narradores das histórias de encantar. Recordamos como éramos felizes a ver desenhos animados. Paramos e percebemos porque tudo parecia tão fácil. N

Domingo de Sol

- Está um dia tão bonito, aonde é que queres ir? A língua entorpece-me de raiva sempre que me obrigam a responder a esta pergunta. Só me ocorre Paris, Nova Iorque, Rio de Janeiro, ou muitos outros sítios bem longe daqui, onde sei que não é possível ir de imediato. - Sei lá, decide tu. E é o suficiente para que subitamente surjam trovões num céu imaculadamente limpo. Chave no carro, primeira metida, vrrrrmmmm, aqui vamos nós. - Esquerda ou direita? Silêncio. Olhares suspensos na brisa que atravessa o tablier. - Vira para qualquer lado ao calha e vai andando, logo se vê. Palavrões mudos retidos na boca. Mais silêncio. Fecham-se os olhos debaixo dos óculos de Sol e respira-se fundo. O carro ganha velocidade de Domingo, pouco mais que dois cavalos. Num arrastar suave, espreitam-se as vistas que passam pela janela em câmara lenta. Sempre as mesmas ruas, sempre as mesmas casas. As pessoas mudam, mas ainda assim parecem todas iguais. Exibem trajes domingueiros, uma camisola n

Sono perpétuo

Ontem à noite, enquanto as minhas pálpebras repousavam temporariamente sobre os olhos, no outro lado do mundo, uma outra mulher adormecia. Hoje, ao despertar para um magnífico domingo de sol, sou surpreendida por uma notícia triste: ela não acordou. O corpo da cantora, tal como a voz, mergulhou para sempre num sono profundo. A tristeza que sinto inunda-me de recordações. Lembro-me perfeitamente de um dia ter desejado ser como ela. Tinha uns doze, treze anos, quando fui ao cinema ver o primeiro filme para crescidos. A euforia era grande. Um momento inesquecível. Sem pais, sem ninguém a controlar, lá fomos, avenida abaixo, um grupo de amigos, alguns namoricos pelo meio. Parecíamos gente adulta na sessão das nove e meia. Na consciência, apenas o peso da ordem para regressar a casa antes da meia-noite. O coração batia forte, acelerado. Emoção, sorrisos, sussurros e risinhos trocados a meia-luz, ilusões misturadas com desejo de um primeiro beijo no escurinho do cinema. Pelo meio, de colo

Vaga de frio

Este vento gélido parece arrastar destroços de leste. É Fevereiro de um ano em que ninguém augura nada de bom. Por cá, por toda a Europa, Estados Unidos e um pouco por todo o lado, é a crise. Anda na boca do mundo e afecta mesmo quem não entende os porquês. Lá para o fim de 2012, Dezembro, há quem diga que acaba o Mundo. Para ser honesta, dou pouco crédito ao calendário Maia. Impressionam-me mais as evidências que se me atravessam dia-a-dia no caminho. No outro dia, ao sair do carro, ao virar da esquina, sinto aproximar-se um vulto masculino. Coxeia na minha direcção. Sou subitamente invadida pelo receio. Temo a violência. Tenho medo que me queira fazer mal. Afinal, ouve-se de tudo por aí. Mais perto, vejo tratar-se de um homem de meia-idade. Cinquenta e tal, quarenta e muitos, não consigo precisar quantos anos tem. O retrato visual automaticamente processado pelo meu cérebro diz-me que aquele homem parece carregar o peso de muitos mais anos do que os que na realidade tem. Coxeia. M