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Mensagens

A mostrar mensagens de 2023

PERTENÇA VIRTUAL

Apaixonaram-se ao primeiro clique.  No início, tudo tinha a leveza eufórica da novidade. Tudo tinha o ingénuo encanto do desconhecido. Enquanto deslindavam os detalhes virtuosos da vida privada um do outro, em mensagens infinitas, contemplavam-se teclando, trocando imagens e palavras e emojis. Foram dias áureos de expectativa crescente. Quando será o nosso encontro real? A magia começava a desvanecer-se ao surgir a questão. Alguém não deseja abdicar do perfeccionismo platónico. Camuflados na virtualidade somos todos muito bons. Para quê sair do casulo para dar a conhecer o pior de nós? O melhor é encerrar o assunto enquanto ainda paira a beleza inicial. Um vai-se esfumando e saí de mansinho. As respostas chegam cada vez mais demoradas até não chegarem mais. Encontros românticos são para gente corajosa na vida real. O que aconteceu aqui foi só uma ilusão. A ludibriosa crença de ser possível uma pertença virtual.  (Publicado na revista ESPÚRIA, outubro 2023)

CIBERLOVE

As pessoas tornaram-se descartáveis. Hoje gostam-se, amanhã já não. Na era do ciberlove , tudo é demasiado fast e os corações parecem ter botão on-off . Ninguém namora, todos ficam, e o entusiasmo da novidade dura apenas o tempo de um scroll . 

SUSTENTO FELIZ

São íngremes os trilhos dos que almejam um sustento feliz. O dinheiro enche os bolsos mas a realização alimenta a alma. Desalentados os que se arrastam carregando o fardo de um ofício que não enriquece nem faz sorrir. O trabalho ideal será sempre aquele que alinha a individualidade dos talentos com as múltiplas necessidades do servir à humanidade. 

ANTES E DEPOIS DE MIM

"Se um dia o sol explodir, ninguém saberá que Vergílio escreveu a Eneida". A frase de Saramago, ressoa dentro de mim, desde o documentário "José e Pilar". Tudo o que fazemos vai desfazer-se. Tudo o que escrevemos vai apagar-se. Os livros podem arder, o digital colapsar, a memória perder-se no infinito do tempo. Porque escrevemos afinal? Masoquismo, talvez? Ou pura incapacidade de nos saciarmos com a experiência de existir. Só sei que este vício de trocar tudo por palavras já nasceu comigo. Comecei logo no útero materno a magicar como haveria de contar a metaformose a que me sujeitei para aqui chegar: humana, imperfeita, gemendo de dores e dúvidas e medos, sempre a sonhar com uma felicidade que nunca chega. Valham-me os livros que me têm salvo a existência no deleite de cada página. Abençoadas sejam as palavras que me permitem descodificar o significado de tantos dias abstratos. Louvada seja a palavra escrita, capaz de dissolver as mágoas e perpetuar o eco feliz das

BEIJO MOLHADO

De repente, éramos só nós, à chuva, no meio da estrada. O tempo parou na hora certa dos encontros imprevistos. Pareceu-me ouvir música e o sapateado sorridente do Fred Astaire, quando te perguntei: Vieste dançar comigo à chuva? Não, vim beijar-te à chuva! Prolongou-se um silêncio. E quando voltámos a abrir os olhos, o céu era um arco-íris e nós o sol renascido da tempestade.

BOCAS CHEIAS DE CRAVOS

Que liberdade é esta que não nos deixa sorrir? Insistem em colocar-nos cravos na boca, com o intuito de silenciar as balas que precisamos expelir. A democracia nascida da revolução deixou de gostar dos revolucionários. A verdade é um conceito em desuso e quem a enverga torna-se criminoso. Querem anestesiar-nos com festas e cânticos e flores, como se a fome se alimentasse de circo. Liberdade deve rimar com dignidade mas somos mais pobres hoje que ontem, tão prisioneiros como os que ousaram enfrentar a tal ditadura. Quase meio século de vergonha celebramos hoje, tão longe das promessas de quem sonhou um outro abril.