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A mostrar mensagens de 2013

Quilómetro zero

Fim de ciclo. Hora de despertar e renascer. Tempo de um novo recomeço. Um apelo à correcção de teimosos hábitos entranhados que nos adormecem os sentidos travando a evolução. Uma nova oportunidade de partir em busca de descobertas infinitas. As escolhas são sempre múltiplas e a aposta nem sempre certeira. A caça é tantas vezes feita de tiros ao lado. Mas perseguir um alvo é sempre um objectivo que nos move. Um passo em frente, um salto adiante, um pulo mais alto, um voo mais longe. Avançar é o verbo que sempre se impõe. Desejar. Sonhar. Lutar. Realizar. Por vezes perder. Escorregar. Cair. Sacudir o pó. Reerguer-se. Voltar a acreditar. De novo lutar. Esforço. Fraqueza. Quase desistir. Já falta pouco. Insiste. Se fores capaz de continuar, um dia chegas lá. Um dia hás-de ganhar. O prémio é continuar a ter tempo para fazer e refazer. Toda a vida, por mais longa que seja, será sempre uma obra frustrantemente inacabada. Desliga e volta a ligar. Reinicia o contador e acelera, rumo à próxim

Mandela: longo caminho para a liberdade

"Mandela: long walk to freedom"; Realizador: Justin Chadwick; Protagonistas: Idris Elba (Mandela), Naomi Harris (Winnie). Fui há poucos dias ver este filme que abrevia vinte e sete longos e tortuosos anos de cativeiro em duas horas e meia. E saí da sala de cinema a considerar que o realizador desta película - inspirada na autobiografia homónima de Nelson Mandela, publicada em 1994 - aligeirou demasiado a história. Ainda que seja vincado, quer o isolamento, quer o clima de tortura e humilhação a que Mandela foi submetido na prisão de Robben Island, é fácil abandonar-se a sala com a vontade de querer ver mais, de saber mais, de ler o livro que testemunha, na primeira pessoa, o drama de quem viveu assim: abdicando da sua liberdade em prol da luta pelo direito à igualdade social dos seus semelhantes. A surpresa do filme, para mim, foi a revelação do papel de Winnie ao lado da luta do grande líder. A segunda mulher de Mandela, mãe de duas filhas que cresceram sem ver o pai,

Noite feliz

O espírito acende-se na árvore e aos poucos em cada um de nós. Não há quem lhe seja imune. Gostamos do Natal porque é uma noite sem medo, de ruas e casas muito iluminadas. De estradas desertas e casas lotadas. Uma noite onde até as solidões se confortam de azeite morno derramado no bacalhau. Porque nesta noite até os sem tecto são chamados a sentar-se à mesa diante de um prato quente. Há mais mantas para distribuir e tendas abertas ao convívio dos que se habituaram a chamar cama às pedras da calçada. É a noite mais tranquila de todas as noites porque o mundo, por umas horas, se aquieta e respira. Até os escravos da idade moderna tem ordem para partir em liberdade. Facturam até ao último instante os esquecimentos de alguém e suspiram sonhos quando chega a tão esperada hora de jantar. Os que têm a sorte de sentar-se à mesa, gostam de a ter farta das suas tradições. É a noite do vale tudo, comer e beber e repousar dos sacrifícios passados. Olhar com vagar e descobrir novas rugas nos ro

A desumanização

“A desumanização”, Valter Hugo Mãe, 2013 O que dizer de Valter Hugo Mãe, um escritor que chegou viu e venceu? Se há pessoas que nascem com o dom da palavra, ele foi um deles. Não tem, porém, uma escrita fácil nem consensual. Só um apreciador de belas artes gostará de lê-lo. A escrita de Hugo Mãe roça o surrealismo e causa por vezes estranheza, antes do verdadeiro prazer. Nunca o tinha lido enquanto romancista, confesso. Há muito que sigo as suas crónicas no Jornal de Letras e noutras publicações, apreciando-lhe o estilo: frontal e cristalino, por vezes de uma inocência infantil, sempre a prosar de olho na poética que cada entrelaçar de palavras pode encerrar. A leitura deste seu último romance - “A desumanização” – vem confirmar-me a ideia de que estamos diante de um grande escritor português, com um estilo muito vincado, onde uma obsessiva busca pela literalidade se sobrepõe sempre ao valor da história. Há momentos em que quase esquecemos o conteúdo narrado e nos deleitamos ape

A persistência da memória

“A persistência da memória”, Daniel Oliveira, 2013 Interrompendo um ciclo de leitura de autores premiados, decidi desanuviar com um estreante no romance: Daniel Oliveira. Sobejamente conhecido do pequeno ecrã, este jovem comunicador de trinta e um anos lança-se como romancista com “A persistência da memória” – nome inspirado numa das mais célebres telas surrealistas de Salvador Dali . Neste livro, Camila, a narradora e protagonista da história, sofre de hipermnésia ou síndrome de memória superior, uma patologia que a perturba e afecta, pela impossibilidade de eliminar do pensamento os acontecimentos passados, que lhe perturbam o presente e lhe confundem o futuro. Voando entre Lisboa, Rio de Janeiro e Nova Iorque, a personagem vai-nos revelando os seus segredos – mesmo os mais inconfessáveis – e as passagens mais marcantes da sua vida. Sem nunca roçar o brejeiro, nem recorrer ao vernáculo, o autor descreve com erotismo e subtileza as cenas mais íntimas, conferindo-lhes a dose

Tempo de ser mãe

Ter filhos é inventar tempo. É deixar de conjugar o verbo viver na primeira pessoa do singular. Tu passas a ser mais importante do que eu e a minha felicidade passa a depender do teu bem-estar. Se não estiveres bem, se te pressentir um medo ou uma dor, nada mais me fará sorrir até ser capaz de te aliviar o sofrimento. Por cortesia, os meus desejos cederão o lugar às tuas vontades e só por ti serei capaz de suportar mesmo o insuportável. Aguentar horas de pé a ver-te saltar, saboreando apenas a recompensa do teu riso. Deixar para trás todos os afazeres planeados, só porque me imploras para que vá ao cinema contigo ver o filme que acabou de estrear. Desorganizar-me mentalmente, abdicando do tempo em que deveria estar a sós com o meu pensamento para fazer as pazes com as ideias de futuro que chamam por mim. Permitir-me ser a boneca humana penteada por um arrepio de duas mãos minúsculas movidas a puro amor. O resto pode esperar. O tempo não deixará de correr, mas os outros sonhos têm o

Perdidos e achados

Haverá outra forma de treinar o desapego senão perdermos alguma coisa de vez em quando? Estimamos os nossos objectos como se pessoas fossem e choramo-los quando partem, como se não suportássemos a existência sem eles. E esquecemo-nos sempre que nada temos de verdadeiramente nosso. Tudo vem e vai. De tudo e de todos teremos de nos despedir um dia, para sempre. Há todo um mundo que não voltaremos a ver e que não levaremos connosco no bolso. Mas insistimos. A nossa casa. O nosso carro. Os nossos objectos pessoais. Ignoramos tufões, incêndios e terramotos. Não queremos pensar nisso. Que mau agoiro. Calamidades dos outros, imagens longínquas repetidas pela televisão. Mas pode-nos acontecer. Estaremos preparados para, a qualquer momento, recomeçar do zero sem nada do que acumulámos ao longo da vida? Ninguém está. Não há quem acredite ser capaz. Até ao dia em que a fatalidade nos invade a vida e nos troca os sonhos. Ainda ontem, depois de me sentir extraordinariamente feliz com um duche qu

África minha

“Out of Africa ” soundtrack, John Barry, 1985 Sem tempo para o cinema, este fim-de-semana não resisti ao apelo de uma banda sonora em promoção. Por apenas cinco euros, adquiri esta preciosidade. “Out of Africa” , na versão portuguesa “África minha”, é um grande clássico do cinema para o qual (o já falecido) John Barry compôs um conjunto memorável de temas. Para quem não conhece, partilho a faixa principal “I had a farm in Africa” , que não me canso de escutar repetidamente, sempre com a emoção à flor da pele. Deverá ser uma das músicas da minha vida! 

Escrevo para esquecer

Doença é um nome feio. Mete medo e cheira a hospital. Soa a morte prematura. Dói a quem a sente e a quem a vê. Há dias vi-a passar à minha frente. Ia disfarçada de colega de infância. Quase não a reconheci. Passou empurrada sobre duas rodas. Ao fim de uns segundos, exclamei de susto: o que foi que aconteceu àquela rapariga que eu conhecia? Senti vontade de saber mais, mas vergonha de perguntar. Para quê confirmar o que as imagens revelam sem dó? Nunca mais falei com ela. Se antes não foi oportuno, agora seria constrangedor. Impossível não sentir compaixão de alguém tão jovem e tão privado de vida. A doença rouba mais que a idade. Apodera-se da beleza. Centrifuga a pele e mastiga os ossos. É um furacão de arrancar forças e cabelos. Por onde passa, deixa apenas os destroços e raramente uma esperança vaga de recomeço. Espantei-me: naquele rosto não vi tristeza nem dor. Onde contava ver desespero, observei serenidade. O ser humano habitua-se a tudo. O que não se pode mudar, aceita-se. A

Ensaio sobre a cegueira

"Blindness", Fernando Meirelles, 2008 Agora que o frio convida ao aconchego, volto a pôr a cultura cinematográfica em dia. Na data em que celebraria noventa anos de idade, em jeito de homenagem, assisti pela primeira vez em DVD ao filme que fez Saramago chorar na estreia. Adaptado ao cinema pelo aclamado realizador brasileiro Fernando Meirelles, “Ensaio sobre a cegueira” , baseado no romance homónimo do Nobel português, é um filme chocante que decididamente nos faz abrir os olhos.  Não o terá feito com essa intenção, mas ao ler as primeiras linhas do livro, temos a sensação que José Saramago estava já a desenhar o esboço de um filme. Toda a descrição é muito pictórica, um apelo à visualização, quando ironicamente o tema central é a cegueira. E se, de repente, a humanidade fosse inexplicavelmente contaminada por um estado de cegueira? O autor parte desta premissa para ficcionar o que aconteceria. E a resposta a que chega é o caos. Na sua mente de génio, Saramago imagina o

Orgulho e preconceito

"Pride & Prejudice", Joe Wright, 2005 Uma tarde sossegada de Outono faz-me abrir a gaveta dos DVD por ver. E sou escolhida por este filme de 2005, que há anos me persegue implorando para ser visto: “ Orgulho e preconceito” . Baseado num dos romances mais aclamados de Jane Austen, proeminente escritora inglesa do século XIX, esta é uma história do tempo em que as mulheres casavam sobretudo por conveniência. Mas a protagonista, Elizabeth, é uma excepção à regra e, apesar da pressão familiar para precaver o futuro com um casamento abastado, não consegue conceber a ideia de casar a não ser por amor. Ainda que despreocupada com a possibilidade desse ideal não se concretizar, acaba por fixar a atenção no arrogante e nada simpático Mr. Darcy, acabado de chegar à província. Ela é a rapariga pobre que o vai encantando pela sua inteligência e atitude pouco convencionais. Ele é o rapaz rico e bem parecido que se finge indiferente aos seus encantos, por mera imposição social. Se

Coração adiado

Não me ofereças flores, escreve-me cartas. Oferece-me suspiros feitos de crença em mentiras inócuas. Faz-me sentir tua. Toma-te de posses por mim, já que nada temos de nosso a não ser isto que nos une: uma fúria divina só provada pelos que nada temem aos céus. Até os deuses consentem, abençoando às cegas quem se quer assim. Que mal pode fazer um amor sem fim? Talvez excessivo seja para o músculo que bate, bate. Chegará esgotado às noites, pela arritmia dos dias, mas adormecerá feliz, almofadado na certeza de que pulsa por alguém.     

O Homem de Constantinopla

José Rodrigues dos Santos é um autor best seller porque a sua escrita ensina e entretém a um ritmo compulsivo. Deseja-se virar cada página, ansiando o porvir. Foi assim, veloz e surpreendente, a minha viagem pelas quinhentas páginas de “O Homem de Constantinopla”. Guiada pelas palavras do autor, deslumbrei-me com os encantos da antiga capital do império otomano (Constantinopla), hoje a magnificente cidade de Istambul. É lá que começa a desenrolar-se a extraordinária vida do arménio Calouste Gulbenkian, aquele que viria a transformar-se no homem mais rico do planeta na primeira metade do século XX. A sua visão, precocemente estratégica, leva-o desde cedo a investigar as potencialidades do ouro negro. E será o negócio do petróleo que potenciará toda uma fortuna capaz de financiar a sua grande paixão: coleccionar arte. “O que é a beleza?”. Foi esta questão, lançada por um professor na infância, que atormentou toda a existência de Calouste Gulbenkian, levando-o a uma procura incessante

Uma comédia pouco romântica

Auditório Municipal de Olhão, 26 Outubro 2013 Assisti ontem a esta sátira à vida conjugal protagonizada por Maria João Abreu e Almeno Gonçalves, totalmente desaconselhada a quem está prestes a dar o nó (sob pena de poder arrepender-se). Nesta comédia romântica (mas pouco), o casal decide oficializar a relação ao fim de sete anos de vida em comum, após o anúncio de uma gravidez que não passou de uma brincadeira. E assim começa o rol de peripécias que dão origem às cenas mais caricatas da vida de um casal. Das discussões ao volante, passando pelos enxovalhos à sogra, até às mentiras que se inventam ao telefone, tudo se enquadra na rotina de um casamento. Longe da visão romântica do “felizes para sempre”, o casal mostra como se pode sobreviver com sabedoria às armadilhas conjugais, conseguindo fazer valer a base do sentimento que os une. Num texto, em minha opinião, algo pobre, sobressai a experiência dos actores em palco, sobejamente capazes de o encher com o brilho do seu desempenh

Há quanto tempo

Nem eu sou mais a menina, nem tu o vilão.  Eu cresci, virei senhora. E tu adocicaste os modos, aprendeste requintes de cavalheiro. Que caminhos nos levaram? Eu fui por aqui e tu por ali e notícias nunca mais. Andámos ocupados a viver. Na luta da sobrevivência, os primeiros a morrer são os sonhos. E nunca mais pensámos no que podia ter sido. Os dias que passam encarregam-se de nos oferecer confortos banais. Um prato quente à espera na mesa. O corpo adormecido que acalenta a outra metade da cama. Um abraço sempre certo na partida e na chegada. A perda do entusiasmo é-nos compensada com a alegria constante de terra à vista. Atracámos num porto seguro e por lá ficámos. Tantas vezes embatendo contra o cais. À tona, apenas uma mente que a razão jamais poderá deter.     

Quanto vale um escritor?

Alice Munro (Canadiana, 82 anos) - Prémio Nobel da Literatura 2013 Num passeio pelo Chiado, não resisto ao chamamento bicentenário da montra da Bertrand. Um tapete de capas de Alice Munro cobre o escaparate, condenando os autores circundantes ao anonimato. A curiosidade impele-me a entrar e os meus olhos só veem Alice, Alice, Alice. O meu pensamento anseia soletrar a escrita (até agora desconhecida) daquela mulher que acaba de merecer o prémio máximo que um escritor pode augurar: o Nobel da Literatura. Segundos depois, com “Fugas” na mão, suspiro. Leio as críticas da contracapa. Admiro a fotografia da senhora de cabelo branco e olhos claros, ruga a ruga. Julgo-a bonita apesar da idade. Imagino-a na juventude e gabo-lhe com inveja o mérito do prémio alcançado. O reconhecimento mundial demorou oitenta e dois anos a chegar e, de um dia para o outro, ficou novecentos e quinze mil euros mais rica. Terá ainda tempo e saúde suficientes para usufruir? Espero bem que sim. Se bem que o N

A negação do medo

  Levanto a cabeça e olho em frente. Dou um passo de cada vez com a firmeza que só a certeza impõe. Inspiro fundo e expiro, até respirar só pureza, até o ar ser apenas tranquilidade. Hoje tenho um desafio e vou sozinha. Libertei-me daquele que me fez refém, sem que me tivesse dado conta. Era prisioneira de anos de um rei sem trono cuja diversão era colecionar sonhos roubados, desejos por concretizar. Durante anos, ele foi o meu par. Já nem me lembro, quando nos teremos cruzado, onde nos teremos conhecido. De repente, tinha-o colado a mim, como uma segunda pele. Era uma cobertura invisível paralisante. Parece que ainda o oiço sussurrar-me ao ouvido. Tem cuidado. Não vás. Olha que pode correr mal. A sorte nunca te assiste. Hoje tenho um desafio e vou sozinha. Preciso ser apenas eu. Se fizer como sei e sinto, serei dona da própria sorte. Meu eterno inimigo dos passos em frente, seu teimoso travão das vontades originais, desta vez vou rejeitar-te. Dir-te-ei não, não e não. Medo, perdoa

Depois de nós

Os filhos Vontades próprias que nascem em nós Jorrando sangue, rasgando carnes Fazem-se ouvir Num choro que abafa o grito São alegrias de curar dor Ecos de continuidade Nós depois de nós A vida que fica Depois de sermos só silêncio

O sensual “Desfado” de Ana Moura

De vestido negro cingido, cabelo negro comprido, ela entra em palco e faz-se silêncio, que se vai cantar o “Desfado”. Se este último álbum de Ana Moura é um sucesso mundial, que a consagra definitivamente, não é por acaso. Num estilo muito singular, ela consegue literalmente desconstruir a melodia tradicional do fado, preservando a sua essência. A receita de tamanho sucesso, quanto a mim, é uma mistura explosiva: o calor da voz grave, o jeito sensual de um corpo que se bamboleia discretamente ao ritmo da música e uma simpatia de sorriso sempre rasgado. A tudo isto, soma-se ainda a poesia intensa e vibrante de cada letra e, na actuação ao vivo, o mérito dos músicos que a acompanham em palco. Além da guitarra portuguesa, um baixo, um piano e uma bateria são os instrumentos a que voz de Ana Moura se encosta para fazer nascer canções de indiscutível beleza, que proporcionam a quem ouve momentos de raro prazer. Ontem à noite, no auditório municipal de Olhão, o meu corpo confirmou com a

"O mordomo"

Nota: Não sendo este o cartaz promocional português, foi o que mais gostei.   Cecil é o narrador da sua própria história. Em analepse, recorda a longa jornada do menino negro que, após assistir ao brutal assassinato do pai, pelo gatilho do patrão branco, lhe cabe em sorte passar a ser “preto de casa”. Poupado aos trabalhos forçados dos campos de algodão, o rapaz esmera-se em aprumos na serventia doméstica. E será por mérito reconhecido a olho nu que, mais tarde, num hotel de luxo, alguém o referenciará para servir a Casa Branca. Com uma postura irrepreensível, será o fiel mordomo de oito presidentes dos Estados Unidos. Pelo meio, vive desavindo com um filho que luta pelos seus direitos e perde o outro na guerra do Vietname. Dos anos vinte do século passado até à eleição de Obama, “O mordomo” é uma breve lição da história recente dos Estados Unidos, com todo o enfoque no conflito racial, que dividia as pessoas como hoje separamos a roupa para lavar na máquina: os brancos e os de c

Anos apressados

Nasci tarde demais Num corpo de trinta anos E eu que tinha tantos planos Despertei tarde demais Para desfazer desenganos E eu que tinha tantos planos Tantos e cada vez mais Cresci cedo demais A correr pelos anos A passos largos, sem vagar Afinal eram tantos os planos Tantos que não podiam esperar

És segredo

A falta que me fazes E que não sei explicar É este poema Trago um peso pendurado ao peito Que se desprende num suspiro E mesmo assim não conhece alívio Continuo seguindo os teus passos Como se te procurasse Como se te quisesse encontrar Em toda a parte Vejo-te onde não existes Reflexo omnipresente Estás até onde não estás Levo-te e trago-te em mim Preso em silêncio Mudo e secreto Meu inconfessável amor

O Verão da amizade

Os amigos encontram-se na soma dos gestos. Uma dose de alegria e outra de sabedoria são quanto baste para que duas mãos se apertem na confiança do calor que as une. Um amigo pode nascer de uma palavra ou de um sorriso, de uma gargalhada ou de um acaso feliz. Ao encontrar um amigo há sempre uma janela que se escancara descortinando-nos a mente, permitindo que se revele o melhor de nós. Um amigo que nos descobre tem vocação de marinheiro, daqueles que ao longe avistam terra firme onde é seguro aportar. Os amigos têm mãos capazes de acariciar sonhos e asas para oferecer se quisermos voar. Um amigo é capaz de soprar até ser vento e transportar-nos mais alto ou mais longe, sempre mais e mais além. Não há amigos e amigos. Há amigos e inimigos. Os outros são conhecidos. Seres que partilham um espaço ou um tempo sem o compromisso da continuidade a que se chama amizade. Um amigo não é um ombro, é um travesseiro humano que nos embala e adormece as dores que a vida teima em nos infligir. Cair

Deserto feliz

Juro-te nunca mais Implorando-te para sempre Sermos esta poesia De sangue quente Na noite fria Eternamente, eternamente Quantas vezes me basta Esse olhar, só esse olhar Para viajar, viajar Sem rumo nem tempo És um destino incerto E eu ponto de partida, Bilhete só de ida, Para um lugar deserto Um futuro chamado vida

As horas

Estamos tão certos Como dois ponteiros Que se encontram nas horas Somos meia-noite Somos meio-dia Badalamos na euforia De estarmos de novo juntos Ao mesmo ritmo Contamos segundos E sentimos mudos A certeza que se repete E nos une Cantada a badaladas Afastados, giramos Somos dois E depois, Num segundo Pára o mundo Para num abraço Voltarmos a ser um só Somos meia-noite Somos meio-dia Somos a pura magia Dos breves reencontros Havemos de trocar as voltas Às horas da vida Para que ela nos seja longa, Esticada, comprida Para sermos dias e noites pegadas Luares e alvoradas Até ao fim

Solidões

Hoje vou contar-te O que é a solidão São os silêncios demasiado longos As vozes de conforto que tardam Os abraços demorados de chegar São as horas e os lugares preenchidos de ausência Pessoas fora do lugar Que não estão onde deveriam estar É a busca permanente de uma distracção vaga Que apenas enche o buraco Sem nunca ser capaz de o tapar É ser casado com quatro paredes Filho de pais sem colo Órfão de filhos distantes É o corpo perdido que sente Toda a mente ausente É a pergunta que alguém faz E ninguém responde É a dúvida suspensa no ar A solidão Sou eu Sempre que tu não estás  Versão audio por João Pereira:  https://soundcloud.com/jpolhao-1/solidoes-claudia-sofia?utm_source=soundcloud&utm_campaign=share&utm_medium=facebook

Amnésia nocturna

Procuro o silêncio para pensar-te Ou busco uma melodia triste E choro-te baixinho Um choro escondido de ferida exposta Um choro abafado de almofada A dor que me rasga o peito É o grito que não sei dar É a música demasiado alta Que ecoa pela caverna funda Onde o coração encolhido se esconde A pele é a pauta por onde dançam as notas Como se fossem de novo teus dedos Arrepio-me! E o som ganha força de pranto Penso-te e choro-te baixinho Batendo à porta da noite Só ela pode acolher-me E apagar-me a memória breve Do que não consigo esquecer

Amar salgado

O mar não sabe Que a cada onda Rebentas em mim Pensamento repetido Como um Sol Abrasas-me Sopro de gente Ainda te aguardo Abraço de gelo salgado Salva-me a vida com beijos Sou náufraga Deste amor intenso, imenso Do tamanho do mar

Ocaso

Quase noite. Espanto-me com a vida que me chega sem que a tenha chamado. Espero as surpresas que ainda não sei com a certeza que vão chegar. O meu corpo é a quietude do dia a pousar-me aos beijos. Nos meus olhos, o retrato fixo da beleza do momento. Será isto o presente? Embrulhado, junto ao peito, levo-o ao colo para dentro. Aqui e agora, neste abraço, só falta o que há-de vir. Amanhã ou depois saberei o que é.

Olhar Olhão

 "Terraço Pizza na Pedra", 5 Julho 2013 (foto da autora)  Procuro olhar a cidade de olhos fechados, passeando pelas memórias da minha vivência de habitante. Aterrei aqui há quase trinta anos e só agora pareço começar a observar com atenção o pulsar da vida em meu redor. Viajo de norte para sul. Lá ao fundo, uma cordilheira recorta o céu. Como se nos vigiasse dia e noite, noite e dia, sobranceiro e mudo, o cerro de São Miguel amuralha toda a planície urbana.   Pela fortaleza de terra abaixo resvalam blocos de cimento. As casas, começam por ser poucas, depois são cada vez mais e mais e mais, até serem muitas, concentradas num aglomerado de quadradinhos no coração da cidade. Olhão é uma terra pintada de branco onde as casas são pequenos cubos despreocupadamente sobrepostos. São centenas de quadrados imaculados vistos do céu. Numa harmonia do que é espontâneo, a beleza sobrepõe-se à desordem visual caótica.    "Da minha varanda" (foto da