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Mensagens

A mostrar mensagens de abril, 2020

CRÓNICAS DA PANDEMIA - VI

Explodem-nos cravos no coração, num arrepio que antecede a lágrima, enquanto choramos em coro à janela o cântico da liberdade. O hino de uma nação em prisão domiciliária faz eco na memória, evocando pensamentos distantes. Entre a saudade do passado e a ânsia do futuro, aqui estamos, prostrados, numa resignação confinada, de olhos postos num ecrã, à espera que volte a ser Abril, à solta nas ruas.

CRÓNICAS DA PANDEMIA - V

E morrem pessoas e pessoas. Números e números. E por vezes um escritor, um médico, um artista. Hoje foi o Sepúlveda. Alguém com nome que será lembrado pelo trabalho exemplar. O resto são multidões anónimas, montanhas de números, nesta chuva de notícias que nos inunda os dias, numa primavera sem flores. Estamos todos reféns da raiva de um vírus, serial killer imprevisível e indomável, que nos retém em cativeiro, a contar caixões à distância, sem direito a despedidas, na espera infinita dos dias que ainda faltam para o recomeço do futuro.

CRÓNICAS DA PANDEMIA - IV

Se há ensinamento que podemos retirar da sexta-feira Santa, sejamos crentes ou não, é o de que devemos amar a nossa cruz. Não há, nem nunca haverá vidas perfeitas, desenganem-se os que continuam a acreditar no contrário. No reverso de cada sorriso, há sempre uma tragédia oculta. Na aparência bem sucedida de cada ser humano, há sempre uma longa e sofrida caminhada, feita de suor e lágrimas. A nossa maior sorte nunca será escapar ao perigo ou à dor, mas conseguir alcançar o espírito de fortaleza, capaz de ultrapassar serenamente a adversidade. Esse é o maior desafio das nossas vidas. O tempo que atravessamos é só um treino. Se aprendermos a abraçar e amar todas as dificuldades, como uma enorme oportunidade, ainda que desfaleçamos de cansaço a meio do percurso, no final do caminho poderemos ressuscitar para uma vida nova, ainda mais plena, confiante e gloriosa.

CRÓNICAS DA PANDEMIA - III

Mesmo em casa, os dias passam a correr, mas este tempo parece nunca mais ter fim. O horizonte é o dia de amanhã e ninguém consegue ver mais além. Acordar vivo e de boa saúde, no conforto do lar, já é tão bom que nem arriscamos sonhar mais alto. Proponho-me fazer demasiadas coisas e chego ao fim do dia com intermináveis listas de afazeres incompletas. Amanhã também é dia, logo faço. Como é que se desliga o botão da cabeça, para nos voltarmos a focar objetivamente em algo produtivo? Dos e-mails ganhei pavor, sobretudo quando começam a cair faturas como pedras. Receber menos (ou alguns até nada) e continuar a pagar, pagar, pagar... Quem é que aguenta? Quem é que resolve, se a culpa não é de ninguém? Há quem invente costurar máscaras ou outras utilidades mas, tirando o negócio da morte, da saúde e dos bens essenciais, nada é ganha pão por estes dias. Nem aos artistas lhes servem os dons. O palco da vida está vazio e o espetáculo foi cancelado. Até ordem a perder de vista, continua

CRÓNICAS DA PANDEMIA - II

É domingo e tenho saudades de ir à missa. Muitos vão rir, outros vão ter a tentação de gozar com este meu desabafo, mas é verdade. Os cristãos por convicção, ao contrário dos cristãos por tradição, vão à missa porque gostam e sentem um vazio enorme quando, por alguma razão, não podem ir. Até isso a Pandemia nos roubou: o prazer de ir à missa. Aquela hora de encontro marcado com Deus, porque connosco próprios, de corpo e pensamento serenados no mais profundo de nós. Hoje a missa veio até mim pela Internet. Modernices necessárias em tempo de isolamento. Mas não é a mesma coisa. Nunca será a mesma coisa. Porque a missa é também um reencontro de amigos, um fruir de uma energia coletiva que dá força, um ritual de gestos, simbologias, cânticos e repicar de sinos, que encerra toda uma beleza. Hoje é domingo de ramos (sem ramos), o início da semana Santa mais atípica e virtual que muitos cristãos já viveram.

CRÓNICAS DA PANDEMIA - I

Rostos semi-cobertos mascaram o medo, asfixiados numa vigilância desconfiada do outro. A fila para o supermercado ainda demora e meio passo à frente ou atrás garante a distância necessária. O segurança, também mascarado, pulveriza as mãos de quem acaba de alcançar a sua vez. Ao entrar a conta-gotas, os clientes parecem mais, mas são os mesmos de sempre, talvez menos até. Lá fora, também o pedinte é o de sempre, talvez agora com mais fome. Ninguém dá moedas porque não as tem. Agora só se usa cartão e isso desculpa a falta de vontade de partilhar seja o que for. Todos temem vir a precisar depois. Lá dentro, esquecem-se as distâncias e os corredores entopem. Andamos sempre a fugir uns dos outros, receosos de um toque ou de um espirro. Pegamos nas coisas com dedos de nojo, imaginando o tédio de as desinfectar uma por uma. E tentamos ser rápidos e concisos, tentando não esquecer nenhum ingrediente para a ementa semanal. Nas caixas, os operadores estão escudados de acrílico, quais políci