Avançar para o conteúdo principal

Mensagens

A mostrar mensagens de julho, 2012

Conto "Choque frontal" - página 10

Eu não morri, por isso tornei-me mais forte. E, contrariando todos os médicos nos seus piores vaticínios, voltei a andar pelo meu próprio pé, pouco mais de um ano após o acidente. Também voltei a conduzir. Comprei um carro novo e afoitei-me logo à estrada, recusando-me prontamente a guardar qualquer espécie de trauma. Em vez de traumatizado, fiquei foi frustrado por tudo aquilo que deixei de poder fazer. Por inúmeras vezes, dei comigo a sonhar acordado: recordava aquele jovem atlético que corria na praia cortando o vento, que praticava judo derrubando astutamente o adversário, que podia dançar toda a noite nos bailes de Verão, que tinha duas pernas ágeis e saudáveis que o poderiam transportar velozmente mundo fora. Depois, olhava-me ao espelho e era apenas o reflexo de um homem sofrido a coxear rumo à velhice, apoiado por uma bota ortopédica compensada e uma muleta. FIM

Conto "Choque frontal" - página 9

- Sr. Eusébio, é hoje o grande dia! Vamos lá pôr de pé e dar uns passinhos. Senti automaticamente um nervoso miudinho, medo e adrenalina misturados numa emoção que me atravessava o corpo. Era como se fosse aprender a dar os primeiros passos e não tivesse a certeza de ser capaz de o fazer. Com o apoio de um andarilho, consegui manter-me em pé. A força com que os meus braços agarravam o metal era tanta que todo o corpo parecia estremecer. O impulso que se seguiu fez-me dar um passo em frente. A família aplaudiu emocionada. Até os olhos do fisioterapeuta deixaram transparecer uma emoção feita de vitória. Aquele foi o primeiro passo do resto da minha vida. Não tardei em poder descer o elevador para ir tomar o café à rua. Já não suportava a bica fria que me traziam diariamente tapada com o pires. A tentativa era boa, mas não resultava. O café estava invariavelmente frio quando me tocava os lábios. Sentava-me perto do balcão e conseguia automaticamente perceber surpresa e curiosidade nos o

Conto "Choque frontal" - página 8

Regressei a casa já num novo ano. Como a maca convencional não cabia no elevador, tive que ser transportado a ombros pelos bombeiros numa maca móvel feita de pano. Quando chegaram ao sexto andar, os dois homens estavam extenuados e eu contorcia-me com dores. A proximidade da minha cama parecia uma miragem. Quando por fim me instalaram numa posição confortável, senti-me aliviado. Aquele quarto passou a ser todo o meu mundo durante os meses que se seguiram. O cheiro a feridas ainda em sangue foi-se entranhando, primeiro na roupa, depois nos móveis, por fim um pouco por toda a casa, até ser aceite por toda a família como normal. Eu era um acamado, palavra horrível para quem diz, pior ainda para quem sente. Sempre me intrigou como seria a vida sexual de um paraplégico. Infelizmente, não tardei em tornar-me especialista na matéria. Eu e a minha mulher tentámos retomar o contacto físico, logo que as dores no corpo se tornaram suportáveis. Ela estava bem mais hesitante que eu. Temia que qual

Conto "Choque frontal" - página 7

Depois, rezava. Ao contrário de mim, ela tinha uma fé inabalável. Sucumbia ao cansaço e acabava por adormecer, sempre de luz acesa, confidenciou-me mais tarde. Só quando deixei de correr perigo de vida é que fui transferido para o hospital da minha área de residência. No hospital de Faro, os meus filhos aguardavam, ansiosos, o nosso reencontro. Uma visita de cada vez, primeiro entrou a minha mulher, depois o meu filho e, por fim, a minha filha. Foi ela a única capaz de me contar mais tarde o que sentiu ao ver-me naquele estado. Disse-me que estava desfigurado, meio amarelado e fez-lhe imensa confusão ver-me sem óculos e sem dentes. Até a placa que eu usava na altura ficou danificada devido ao acidente. Segundo me disse, como não conseguia falar muito, fiz-lhe festas na mão que ela apoiara sobre a cama. E ficámos ali, escassos minutos, somente a contemplar o olhar um do outro, como se em silêncio fossemos capazes de dizer todo o amor que sentíamos. Os dias pareciam an

Conto "Choque frontal" - página 6

Entretanto, os dias no hospital passavam com um vagar pintado de infância. Sem as habituais obrigações, horários, prazos e tarefas urgentes por cumprir, consegui aperceber-me de que todos os dias têm efectivamente vinte e quatro horas, suave e lentamente contadas pelo ponteiro dos segundos que pacientemente se arrasta aos tremeliques, milhares de vezes ao longo do dia, contornando em movimentos circulares todos os números e tracinhos desenhados no relógio. As rotinas eram fixadas pela sequência de rituais que se sucediam dia após dia, após dia. Logo pela manhã, o aproximar de um tilintar metálico proveniente do corredor anunciava a chegada do pequeno-almoço. Um copo de leite morno e uma carcaça com manteiga, um menu que se repetia a meio da tarde, à hora do lanche. Quando voltei a ter apetite, estas eram as minhas refeições preferidas. Se me fosse permitido, abdicaria do almoço e do jantar, compostos habitualmente por um caldo deslavado a que chamavam sopa e um prato de carne ou peixe

Conto "Choque frontal" - página 5

- Sr. Eusébio, já acordou? – Irrompeu uma voz feminina quarto adentro. Enquanto pestanejava, esforçando-me por permanecer com os olhos abertos, vislumbrei uma mulher loira de bata branca. A enfermeira Elsa era uma jovem na casa dos trinta anos, com bons modos e muito bom aspecto. Saudei a sua presença com um gemido, a única forma confortável de me manifestar. E ela continuou a fazer-me perguntas de circunstância, sabendo de antemão que as respostas seriam pouco mais que lamentos monossilábicos. - Então, como é que se sente? Está com dores? Quer que lhe molhe os lábios? Eu assenti piscando os olhos repetidamente como se quisesse acenar com a cabeça. Tinha a boca tão seca que até a língua parecia feita de borracha. Delicadamente, ela mergulhou dentro de um copo de água a compressa enrolada num pauzinho de madeira e começou a humedecer-me os lábios. Ia começar a fazer um esforço para tentar falar quando ela me dissuadiu: - Não se canse, Sr. Eusébio. Procure descansar. Não se preocupe qu

Conto "Choque frontal" - página 4

Imagino como deve ter reagido, ela que é tão nervosa. Pensou logo no pior, quando lhe confirmaram que eu estava nos cuidados intensivos do hospital de Beja. O que se seguiu foi toda uma família em alvoroço. Desesperada, desfeita em lágrimas, a minha mulher não tardou em buscar conforto junto de amigos chegados. Foram eles que conduziram o carro que em pouco tempo partiu acelerado rumo ao Alentejo. Lá dentro iam também os meus filhos, dois adolescentes, um rapaz e uma rapariga carregando um silêncio com sintomas de orfandade. Naquele dia, Maria e Manuel tinham, respectivamente, dezasseis e catorze anos. Eram uns miúdos porreiros, aliás, são uns miúdos porreiros estes meus filhos. Quando mais tarde tive consciência que podia tê-los deixado desamparados, que podia nunca mais tê-los visto, senti uma dor no peito. Nesse dia, pela primeira vez depois do que me aconteceu, chorei. Não sei ao certo quantas horas estive inconsciente. Apenas sei que foi o tempo suficiente para avistar a mítica l

Conto "Choque frontal" - página 3

Muito antes dos bombeiros chegarem ao local, houve alguém que, sem querer, acabou por ser a primeira testemunha do sinistro. Soube mais tarde que era um homem e que, para minha sorte, era médico. Não teria sobrevivido até à chegada do socorro se aquela alma não se tivesse cruzado no meu caminho. Diz ele que, por estar em choque, eu estava a sufocar com a língua. Foi ele quem ma desenrolou evitando a asfixia. Se fosse crente, teria ficado a pensar que aquele homem foi um anjo que desceu à terra naquele instante para me salvar. Um minuto a mais poderia ter feito toda a diferença. Nos momentos que sucederam o acidente, muitos foram os carros que tiveram de parar junto à berma, imagino. Os destroços estavam de tal forma atravessados na via que não permitiam a passagem de qualquer veículo. A curiosidade mórbida foi-se aproximando. Sou capaz de imaginar quantas pessoas terão saído do carro para me espreitar, para assistir ao vivo à (minha) tragédia humana. Exposto como um espantalho, não esp

Conto "Choque frontal" - página 2

À minha esquerda, do lado de fora da janela estilhaçada, um homem de capacete amarelo sabia o meu nome, apesar de eu não o conhecer. Por que raio haveria de querer falar comigo? E a voz voltava, sumida, longínqua, como um eco que ressoa no fundo de um poço. - Sr. Eusébio, tenha calma, que já o vamos tirar daí. Minto se afirmar que me lembro de todos estes pormenores. Talvez seja apenas o meu inconsciente a falar mais alto. Quem sabe, tudo o que julgo lembrar-me não seja mais do que um amontoado de memórias fabricadas pelas centenas de vezes que já ouvi da boca de outros a minha própria história. Dentro de mim, continuam a ecoar perguntas às quais ninguém me sabe responder: Porquê eu? Como é que aquele acidente me pôde acontecer. Nem Deus, nem nenhum santinho me havia de dar resposta até hoje. Naquela manhã de sábado, eu era ateu. E nem o que dizem ter sido um milagre me fez mudar de ideias. Prefiro acreditar que podemos ter sete vidas como os gatos. O pior é que, feitas bem as contas,

Conto "Choque frontal" - página 1

Naquela manhã, quando saí de casa, nunca imaginei que pudesse não regressar ao anoitecer. Às seis e meia daquele sábado, chovia torrencialmente quando o toque irritante do despertador de corda me fez abrir os olhos. Para meu espanto, perante tamanho ruído, lá em casa mais ninguém acordou. Ao meu lado, na cama, a minha mulher dormia com gosto. O seu rosto não exibia qualquer ruga, a sua mente adormecida não conseguia antever qualquer sobressalto iminente. Continuava a dormir e a sonhar que ainda podíamos ser felizes para sempre. Naquela manhã de Novembro, faltava um mês para o Natal. E os meus filhos, que ficaram a dormir quando sai de casa, não podiam sequer imaginar que iriam passar a consoada num local completamente diferente do habitual. Lamento profundamente nunca ter sido dado a manifestações espontâneas de carinho. Hoje, ainda me lamento por nessa manhã ter seguido viagem sem lhes dar um beijo. A minha mulher e os meus filhos haveriam de ter gostado que me despedisse deles. Tive