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A mostrar mensagens de 2022

INAJUSTÁVEL

Sei o que quero e gosto de poder escolher. Não fico com sobras, nem com o que está disponível, receando a escassez. A minha medida certa é uma só. Não me estico nem me encolho para caber melhor em lugar algum. Ajustar-me ao inajustável está fora de questão. Sou ampla, sou extensa, sou profunda. Só me encaixo onde me puder expandir, multiplicar, florir. Não me limitem nem me delimitem. Quem bem me quer, eleva-me e eleva-se comigo. Deixem-me ser inspiração e perfume.  

DESAFETOS

Que espécie de animal és tu que já ninguém te passa a mão pelo pêlo? Nem um afago, nem um roçar de nariz, nem um convite a uma sesta no colo... Adormeces sempre assim, na solidão gelada dos que vivem sem permissão para se aninhar no conforto do calor humano. Quem mordeste tu, animal racional, para a vida te privar da necessidade básica dos afetos?

A AURORA DA SABEDORIA

Mais um ano para bendizer e carimbar no passaporte da minha existência. As decisões multiplicam-se e não ficam mais fáceis com o passar do tempo, ganhei foi a capacidade de equacionar melhor o que não quero, com coragem para preferir o nada quando algo me sabe a pouco. Sempre que uma dúvida me assalta, começo por descartar todas as soluções que não me convêm, até a decisão mais lúcida prevalecer. O mundo acelera e enlouquece a cada dia que passa mas eu nunca me senti tão serena. Eu não sou o fluxo do rio que corre, sou apenas o olhar fascinado que contempla o nascer e o pôr do sol. Cada milagre começa cá dentro. Já ninguém me obriga a correr, se eu não quiser. Aprendi que chegarei sempre no tempo certo aonde sou esperada. Faço o que posso, mediante o que sei, com as ferramentas que tenho. Depois, confio a sorte ao fluxo abundante da vida que deseja sempre abraçar-nos. Neste processo de despertar da consciência, em busca do caminho de regresso à essência - no qual sei que me encontro -

SER E PARECER

Nem sempre me faço entender como gostaria. Chego aos outros deturpada, uma versão caramelizada da minha doçura interior. Por vezes, sou dura ao paladar. Mas quando me permito ser saboreada, sou mel ou qualquer outra substância açucarada, causadora de uma saudável dependência. Não me desgostes por puro ímpeto. Senta-te ao meu lado e oferece-me tempo. Conhecer o outro é uma arte que requer serenidade, compreensão e vagar.

UM DIA...

Um dia hei de chamar-te meu amor. Quando a força da certeza nos entrelaçar as mãos e as bocas sossegarem todos os beijos retroativos multiplicados no eco da ausência. Nesse dia, os nossos olhos voltarão a sorrir, na presença constante do coração aguardado, extinguindo de todos os dicionários a palavra saudade.

O LUGAR PARA ESTACIONAR NA VIDA

No outro dia, perdi as lentes cor de rosa e assumi uma miopia seletiva que me protege do pânico dos obstáculos em contramão. São tantos os interesses que circulam em todas as vias, prontos a colidir com os meus, que raramente consigo abertura para me encaixar. É preciso aguardar em infinitas filas de espera pelo nosso lugar para estacionar na vida. Às vezes, circundamos pessoas e lugares errados por anos. Outras vezes, o trânsito flui até ao ponto de encontro destinado, onde o estacionamento está reservado para nós. Somos veículos humanos em busca de estacionar na vida. Quem ganha a corrida é a sabedoria paciente de todos aqueles que aproveitam os atalhos e becos mais perversos para sorrir. 

AVISTANDO A NOITE

Assim a noite surge como um aviso: Todos os silêncios se impõem, exceto o das aves canoras que rasgam o céu num sonoro alarme; o sol desaba a pique sobre as cordilheiras, definindo o horizonte numa linha de recorte; a paisagem sombria fica estrelada por salpicos de luz elétrica que pontuam os caminhos; há uma paz que subitamente se instala por toda a parte, exterminando inquietações; a brisa que nos arrefece o corpo convida-nos ao recolhimento; é hora de adentrar a noite, fechando a porta aos sobressaltos do dia; chegou a hora da escuridão, silenciosa conselheira que adormece o pensamento dos puros, concedendo-lhes a ressurreição do sono.  

SER MULHER

Continuas a ter de provar o dobro para alcançar o mesmo. Talvez por isso, mulher, insistam em oferecer-te flores, enquanto te honram com um dia especial. A 8 de março, elevam-te e fazem sentir-te única. No dia seguinte, a realidade recorda-te o que é ser mulher no século XXI. Um pouco mais que no século XX. Bastante mais que no século XIX. Mas ainda tão pouco perto do que consegues sonhar. Ser mulher é viver dividida entre escolhas difíceis. A mulher (mãe-profissional-cuidadora familiar) só consegue ser plena quando encontra na companhia o equilíbrio de um suporte de segurança. Interpretar todos os papéis do universo feminino a solo tem um peso de sacrifício que amputa a criatividade. Ser mulher é uma alegria ampla carregada de cansaço. É aprender a sorrir entre lágrimas, quando o disfarce da maquilhagem consegue suavizar as marcas de um esforço acrescido. A beleza de ser mulher revela-se na força do grito. Cada mulher liberta o seu, convertido em talento ou missão, afirmando a sua cap

AMAR (ATÉ) O INIMIGO

Quarta-feira de cinzas. E ao sétimo dia a guerra continuou, apesar da quaresma anunciar um tempo de reconciliação e paz. Nada é mais certo de que somos pó e ao pó voltaremos. Todos, sem exceção. Escusado era interromper tantas vidas precocemente pela ambição cega de um só homem. Hoje, como cristã, ao receber a imposição das cinzas na Eucaristia, em sinal de arrependimento e conversão, pedi perdão por Putin e a sua conversão ao bem. Para quem não crê, parece ridículo, eu sei. Mas o caminho da paz nunca se construirá amaldiçoando o inimigo, antes invocando sobre ele o perdão, a misericórdia e a iluminação divina de que tanto precisa. Com o cérebro invadido pelas cinzas de uma Ucrânia em lágrimas, que todos os crentes sejam aliados em oração, para que a força invisível em que acreditam consiga sobrepor-se à escuridão. Enquanto o mundo for mundo, será eterna a luta do bem contra o mal. Neste perpétuo braço de ferro, façamos força do lado certo.

A SOLIDARIEDADE PÕE-SE A CAMINHO

Camiões carregados de ajuda preparam-se para atravessar a Europa até às fronteiras da guerra. Quando a solidariedade se faz força na partilha comunitária, são os mais pobres que mais partilham as suas misérias com os que nada têm. É o ímpeto de ajudar que nos faz humanos, reconhecendo no outro carência maior que a nossa. Partilhar o pouco que temos torna-nos sempre maiores, ainda que mais pobres. No gesto de dar sonha-se a alegria do outro, mesmo a sorrisos de distância da última memória feliz. Destemidos compatriotas, com apurado sentido de missão, fazem-se ao caminho para ajudar no combate. Pela frente têm milhares de quilómetros, até uma chegada sem direito ao cansaço. Por cá, confiantes na fé, os que se mantêm à espera de melhores notícias trocam manifestações por vigílias de oração pela paz. Ainda antes das tropas russas entrarem em Kiev, a Ucrânia assina mais um ato de valentia aderindo à União Europeia. A guerra continua devagar, na ótica de quem assiste do sofá. Quando os refug

A SOLIDÃO MATERNAL DAS MULHERES

Enquanto os homens ficam para defender a pátria, as mulheres partem para proteger os filhos. Num cenário de guerra, acentua-se a solidão maternal das mulheres, predestinadas à missão maior de garantir a continuidade da descendência. Os homens arriscam a vida, as mulheres carregam a sua e outras tantas ao colo, até à incerteza de um destino seguro. Sempre que um homem fica para trás, por imposição ou vontade própria, uma mulher é obrigada a munir-se de coragem para seguir em frente. Um filho acaba por ser a força motriz para continuar a caminhar. Nos escombros dos sonhos, arruinados pela vida que não aconteceu conforme o esperado, os filhos são o oxigénio das mães asfixiadas pelo desespero.

A GUERRA EM DIRETO

Estamos aqui como se estivéssemos lá. As imagens e os sons do medo chegam-nos em tempo real, fazendo tocar as nossas sirenes interiores. É alarmante imaginar a nossa vida a ruir assim, abrindo mão de tudo o que damos como certo, em nome da sobrevivência. Deixar de ter direito ao conforto da cama e ao sossego do sono. Deixar para trás a casa à qual não sabemos ser possível regressar. Despedirmo-nos de filhos sem a certeza do reencontro. Caminhar pela destruição dos dias na certeza de que tudo é incerteza. Aprender a aceitar a impossibilidade imediata de suprir a fome, a sede, o sono, a higiene, a necessidade de comunicar com quem amamos é uma regressão civilizacional. Sob a ameaça da privação, facilmente nos podemos transformar em animais selvagens. Quando começarem a escassear os recursos, irá imperar a lei do mais forte. No terceiro dia de uma guerra às portas da Europa, termino o meu banho quente com o desconforto desta reflexão interior. O pequeno almoço que se segue parece-me um tr

O TEU INVISÍVEL

Todos te veem, e até fingem gostar de ti, mas ninguém repara na tua solidão. Espreitam o cintilar áureo dos teus dias, ignorando a escuridão do teu quarto. Ninguém imagina a profundidade da caverna dos teus medos, ninguém sabe onde escondes o baú dos teus segredos, ninguém sonha a lonjura do refúgio ermo dos teus sentimentos. Até que alguém ouse dar-te a mão, arriscando percorrer contigo os labirintos mais estreitos, com coragem para provar do melhor e do pior, até descobrir o teu ponto de equilíbrio e aí reconhecer o tanto que és.