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A mostrar mensagens de 2011

Desembrulhando memórias de Natal

A meio da tarde, já o cheiro do fogão a lenha inunda a casa. Orgulhosa dos novos sapatinhos de verniz, Sofia sobe os poiais da entrada a saltitar. Os primos correm para a receber. Passou mais um ano e estão todos tão crescidos… Trocam abraços e beijos e cheiros. Os primos de França emanam aromas que vêm do estrangeiro. Os cremes e perfumes que usam exalam fragrâncias que perduram na memória de Sofia até hoje. A menina atravessa o longo corredor a correr, raspando ao de leve as pontas dos dedos pela parede áspera pintada de rosa velho. Desemboca na sala, onde não se demora, subindo mais um degrau até à cozinha onde fervilham tachos no pequeno fogão. A avó bate claras em castelo, ultimando as farófias que vai servir logo à noite. Sempre a subir. Falta cumprimentar o avô, que como sempre está no quintal, envolto no seu mundo de redes e alcatruzes com cheiro a maresia. Sentado no banco de madeira pintado de azul, junto ao fogão a lenha, de boné de fazenda e bigode sempre negro (apesar d

O meu fado é Lisboa

Querida Lisboa, escrevo para te contar que a menina que viste nascer já é uma mulher. Que distraída que andas, minha querida, quem nem a viste passar no outro dia. Sim, ela esteve aí. De visita rápida, daquelas que os médicos costumam fazer. Que disparate, isso era no tempo em que os senhores doutores se dignavam a ir a casa dos pacientes e os tratavam pelos nomes. Onde é que isso já lá vai… Voltando à conversa, sim, a menina já senhora passou por ti há dias. Chegou de comboio. Agora que já atravessa a ponte, é uma maravilha. Contou-me que a manhã estava fria, porém ensolarada. De óculos escuros, fez-se ao caminho, a pé como mais gosta. Parece que a estou a ver, sentindo-se livre como um passarinho que o dono libertou da gaiola. Cabelos ao vento, pescoço aconchegado pela sua inseparável écharpe. Ou seria antes um cachecol? Parece que ainda a oiço pisar o chão ao ritmo marcado pelo atrito das solas de couro nas pedras da calçada. Levava as suas botas altas, parecia uma cavaleira. E lá

O banco do tempo

“O tempo perguntou ao tempo, quanto tempo o tempo tem? O tempo respondeu ao tempo, que o tempo tem tanto tempo quanto o tempo tem”. E por aqui começa hoje a raiz da minha inquietação transformada em desabafo. Hoje apetece-me falar do tempo. Não do tempo que faz lá fora, mas do outro tempo. Aquele que corre, ora a conta-gotas ora a torrentes desenfreadas. Aquele que nasce e acaba connosco, ou que nos perpetua pelas mãos dos nossos filhos. Sinto hoje que o tempo corre mais veloz que noutros tempos. Os dias colam-se às noites e as noites fazem-se dias sem quase me dar conta de ter feito o que quer que fosse. É tudo tão rápido, descontrolado, escapa-me por entre os dedos… Sinto que somos uma espécie de depósito bancário. Só que em vez de dinheiro, depositam-nos um determinado valor de tempo à nascença. E cada qual, bom ou mau gestor, terá de saber aplicar esse valioso bem da melhor maneira possível. O que terei feito hoje de interessante, pergunto aos meus botões? A resposta não vem. Mas e

O corredor da vida

O som estridente assinala a rotação de números no painel. Olhos grudados nos caracteres de um vermelho luminoso evidenciam um misto de cansaço e desilusão. Ainda não chegou a minha vez, sinto-os pensar em silêncio. Uma senhora deixa escapar um suspiro. “Eu já cá estou desde as oito”, esclarece com um sorriso conformado de quem não tem alternativa. São onze da manhã dentro de um contentor improvisado, disfarçado de ala de hospital. A sala de espera transborda de gente. São muito mais pessoas que assentos. Não há aquecimento nem televisão, nem a famigerada revista cor-de-rosa que tanto aligeira o passar das horas. Aqui falta de tudo um pouco, menos gente doente. Rostos cansados, envelhecidos pela idade e pelo sentir da dor. Bocas de hálitos pesados soltam suspiros. Estômagos vazios e bexigas cheias não se movem receosos de que a vez lhes passe ao lado. Quando finalmente o número da senha coincide com o que surge no ecrã, há um corpo que se arrasta implorando por quem lhe prolongue a vida

A vida num segundo

O que estaria a pensar aquele rapaz, de ar sereno, que atravessava a passadeira no final de mais um dia de trabalho? A noite havia chegado mais cedo. Perto das seis da tarde, já era escuro como o breu. E ele, aquele rapaz sem nome, pára, olha e cruza a estrada, convicto de estar em perfeita segurança. Suspeito que estaria a pensar no filho prestes a sair da escola. Ou talvez ainda nem sequer tivesse filhos. Quem sabe, uma namorada talvez? Devia estar com fome, ansiando por uma refeição quente, quando a temperatura cá fora já vai fria. Caminha tranquilo, vestido de negro. Parece que trabalha numa dessas empresas que instalam televisão por cabo, ouvi dizer. Pára, escuta e olha. Um carro pára também. Ele atravessa. Um outro carro, em sentido contrário, não o vê. O som parece o de um pontapé, de alguém muito irritado, num pedaço de latão. Um vulto negro levanta voo e aterra violentamente à minha frente. Corpo inerte, rosto mergulhado em sangue, uma multidão que se avoluma como formigas. O

Estávamos todos à tua espera

No dia em que chegaste a este mundo, estava eu numa outra festa de aniversário. No instante em que o sopro apagou as velas e um sonante aplauso ecoou na sala, não sabia sequer que já tinhas nascido. Suspeitava, porém, que isso estava prestes a acontecer. Tentava distrair-me a todo o custo. De copo na mão, quase me obrigava a abanar timidamente o tronco ao ritmo da música alegre, que contrastava de forma evidente com o meu semblante baço e distante. Queria ignorar, esquecer, apagar da minha memória o dia em que o teu pai me contou que haverias de vir ao mundo daí a poucos meses. Nunca imaginei que o nascimento de um bebé pudesse transtornar-me tanto. Nesse dia lembro-me de ter chorado. De ter chorado muito. Tanto, tanto que terá sido o suficiente para não o conseguir voltar a fazer nos meses seguintes. À enxurrada seguiu-se um longo e árido período de seca lacrimal. Hoje, à distância dos anos que nos ajudam a entender mesmo as coisas que parecem não ter justificação, arrependo-me de cad

A secretária

É tão bom estar aqui em silêncio. Apenas eu, o computador, o doce ruído das teclas e a nova secretária. Há muito que desejava um canto. Mesmo um recanto que fosse. Um cantinho só meu, nesta minúscula casa, onde me pudesse recolher a sós com os meus pensamentos. Um refúgio onde pudesse desembrulhar as ideias, como quem desenrola um novelo de lã. Deixar-me embalar pela Mãe noite, que na lucidez do seu silêncio, me alivia as dores, indicando-me o caminho a seguir. Amanhã, ao acordar, promete-me, o mundo parecerá melhor. E a promessa cumpre-se sempre. Mesmo quando as manhãs de chuva nos fazem resmungar muito antes de abrirmos sequer a janela para inalar a brisa matinal. O mundo, este espaço que nos acolhe os corpos, anoitece febril, adormece enfermo, mas amanhece sempre com votos de um dia feliz. E por falar em felicidade, hoje estou muito feliz com a minha nova secretária. Tão feliz que o mundo, este meu mundo que é também o vosso, me pede para partilhar este estado de graça. Sinto que ch

Madeira marca a diferença

Repetir uma viagem é como rever um filme ou reler um livro. À primeira vista escapam-nos sempre os pormenores. Captamos o essencial, apreciamos o que há de belo e desejamos regressar sempre que as memórias que sobram mereçam ser guardadas para sempre. Queremos regressar, uma e outra vez, aos locais onde fomos felizes, tal como ansiamos rever as pessoas que um dia nos fizeram felizes. Talvez por isso tenhamos sido capazes de inventar a palavra saudade. Uma imperiosa necessidade de recuperar memórias de dias felizes fez-me regressar à ilha da Madeira, um ano depois de lá ter estado pela primeira vez. A euforia da chegada, que anteriormente senti, cedeu lugar à confiança de já saber onde me encontrava. O clima ameno perfeito, o mar a perder de vista e o verde tropical sempre tão eléctrico, parece querer iluminar tudo em redor. Assimilado o essencial, decidi focar-me nos pormenores. E, em tempos de crise, quando em redor da protecção dos produtos nacionais gira uma enorme celeuma, não pude

A última palavra

Menção Honrosa - Modalidade Prosa (Tema: Ser jornalista por um dia) - 41º Jogos Florais Internacionais de Nossa Senhora do Carmo - Fuseta, Julho 2011 (Organização: Casa Museu Profª. Maria José Fraqueza - Poetisa e Escritora) As mãos trémulas e cansadas, que lentamente se arrastam sobre o teclado para escrever estas linhas, já não são as mesmas que outrora seguravam firmemente a caneta, desenhando histórias sobre o papel. Ai, o bloco! Que saudades do meu velho guardião das notas, que lentamente se iam transformando em frases, que iam formando textos, que iam enchendo as páginas impressas, que preenchiam as pausas dos leitores que as iam folheando. Nesse tempo, havia vagar. As horas abriam espaço para nos sentarmos e pensarmos e desfrutarmos de cada detalhe. Os dias pareciam caminhar devagar, sem a pressa dos que hoje correm. Quem corria era eu. Recordo-me bem daquele jovem enérgico que rasgava o vento para alcançar os sonhos. E eu que sonhei um dia ser jornalista. Só para fugir daquel

Limpeza geral

Dizem que tenho a mania das limpezas. No início, contestava. Respondia sempre que estavam a exagerar. Mas a verdade é que continuo a ser constantemente assaltada por uma estranha obsessão em arrumar, organizar e limpar tudo o que me rodeia. Desde os papéis que se amontoam velozmente sobre a secretária à roupa suja que me vai entupindo a cesta a um ritmo assustadoramente descontrolado. Aos meus olhos, a loiça suja que se avoluma na pia assemelha-se a um cenário de guerra. Todas as coisas que se vão encostando a um e outro canto, à espera do dia em que “logo se vê” o que fazer com elas, causam-me uma espécie de horror. O mundo, tudo o que o compõe e rodeia, é mais belo quando está em ordem. Contemplo deslumbrada o quarto arrumado onde, confortavelmente deitada numa cama a cheirar a limpo, me deito a devorar as páginas de um livro. O prazer que experimento depois da exaustão permite-me fruir da beleza do momento como se de uma obra de arte se tratasse. O mundo, este meu mundo, implora-me

Conto "Casa de Bonecas" - página 10

Nas paredes daquele grande salão ficaram gravadas as memórias do dia que havia de mudar o rumo de toda a sua vida. E isso inspirava Maria em cada um dos seus projectos. Sempre que necessitava de inspiração, recordava a conversa em que tinha dito a Dona Carlota que iria desenhar uma enorme casa só para si. Talvez movida pela crença de que o espírito da sua velha amiga a estaria sempre a ajudar, a inspiração acabava por surgir naturalmente, como que por magia. Os anos foram passando: Primavera, Verão, Outono, Inverno e tudo de novo outra e outra vez. Maria tem vinte e oito anos numa tarde abafada de Verão. Está submersa em vários metros de esquiços que rascunham projectos de casas que hão-de nascer. Um pouco cansada, decide fazer uma pausa. Pega na caixinha de música que orgulhosamente exibe sobre a secretária e decide dar-lhe corda. Ao som da familiar melodia, abre a janela, deixando a brisa acariciar-lhe o rosto. Por entre as cortinas, que ficam a dançar ao ritmo do vento, Maria esprei

Conto "Casa de Bonecas" - página 9

Na ausência de Dona Carlota, Pedro fez cumprir os desejos da avó e encarregou-se ele próprio de garantir que nada de essencial iria faltar a Maria. Assegurava-lhe a compra de todos os materiais escolares, inscreveu-a num centro de ocupação de tempos livres, garantindo um lugar onde poderia cumprir os deveres com o acompanhamento de que não dispunha em casa, e definiu um dia da semana para ir buscá-la à escola. Todas as quartas-feiras, estacionava o carro junto ao portão e esperava que Maria chegasse. Depois, rumavam a uma esplanada à beira-rio, fosse Verão ou Inverno, e sentavam-se a comer um gelado e a relatar tudo o que lhes tinha acontecido ao longo da semana passada. No dia em que completou dez anos, Maria ganhou a sua primeira bicicleta. E no dia em que completou quinze, um computador. Aos dezoito, já na universidade, recebeu um cheque que serviria de passaporte à maior das ambições de quem atinge a maioridade: tirar a carta de condução. Da menina que uma noite andara perdida pela

Conto "Casa de Bonecas" - página 8

Se calhar atrasou-se, foi o seu primeiro pensamento. Poucos segundos depois chegou Pedro cabisbaixo, ao volante do seu automóvel. Parou o carro e convidou-a a entrar: - Entra Maria, precisamos de conversar – anunciou, com uma voz trémula. - E a Dona Carlota, porque é que ela não me veio buscar hoje? – Questionou a menina, longe de adivinhar qual seria a terrível resposta. Pedro ficou em silêncio mais alguns segundos. Ainda não sabia bem como dar a notícia. Esperava encontrar algures no seu pensamento as palavras mais correctas para falar de morte com uma criança. - A avó… ficou doente esta noite – avançou Pedro. - Doente? – Interrogou Maria. – Mas doente com quê? – Quis saber a menina, forçando Pedro a rapidamente inventar o cenário menos doloroso possível: - A avó sentiu-se mal e tivemos que chamar o doutor. Ele veio, deu-lhe um remédio e a avó ficou a dormir… - Pedro fez nova pausa, agora com os olhos rasos de água. As evidências faziam Maria começar a aperceber-se de que deveria ter

Conto "Casa de Bonecas" - página 7

Pedro sabia que não poderia fazer muito para resolver os imensos problemas em que aquela família estava mergulhada. Contudo, sentia que ao fazer algo por Maria, já estaria a dar um contributo importante à humanidade. Às vezes temos que nos conformar de que não podemos mudar o mundo, mas em contrapartida temos sempre a hipótese de mudar, por um pouco que seja, a vida de alguém, costumava opinar muitas vezes o jovem rapaz no decorrer das longas tertúlias com os amigos. De volta à “Casa de bonecas” (nome com o qual Dona Carlota havia baptizado a sua loja na década de sessenta), Maria reencontrou na vida real o conforto que muitas vezes vivenciava nos seus sonhos. Tinha até já tomado uma decisão, muito adulta por sinal para uma criança de apenas sete anos: - Quando for grande, vou ser arquitecta! – Afirmou, com uma convicção fora do vulgar para uma menina tão pequena. – E vou desenhar muitas casas. Uma delas só para mim, muito grande, onde eu possa ter um quarto só para mim, uma casa de ba

Conto "Casa de Bonecas" - página 6

- Outra tentativa… “Na minha rua há….” - Há lá perto muitos prédios coloridos, assim aos quadradinhos cor-de-rosa, azuis, verdes e amarelos - disse, articulando as palavras tão depressa com a boca como com os gestos das mãos. Com esta deixa fez-se luz na cabeça de Pedro. A casa da menina ficaria certamente próximo de um bairro social que havia ali perto. Decidido a confirmar a sua pista, Pedro convidou Maria a acompanhá-lo até à rua. Iria acompanhá-la a pé, até se certificar que a deixaria devidamente entregue à família. Antes de sair, Maria quis dar um beijo a Dona Carlota e dizer-lhe obrigada. Sentia que aquela velhota a tinha vindo salvar da sua pobre e triste existência. De facto, não estava muito longe da realidade. Só ainda não o sabia. - Vamos combinar uma coisa - sugeriu Dona Carlota - a partir de amanhã eu vou buscar-te à porta da escola e depois vens para aqui comigo um bocadinho, tomas um lanche e fazes os trabalhos, antes de voltares para cada, pode ser? - A sério? Yupi! –

Conto "Casa de Bonecas" - página 5

A hora que demorou aquele lanche tardio serviu para Pedro colocar a avó ao corrente do que se passava com Maria. Dona Carlota ficou muito sensibilizada ao saber que a menina era muito pobre e que vivia em condições miseráveis apenas com a mãe e mais quatro irmãos. Apercebeu-se de que era uma criança carente, talvez pelo facto de a mãe estar mais preocupada em arranjar dinheiro para sustentar os filhos do que em confortá-los com gestos de carinho. A falta de dinheiro bloqueia-nos sempre a vontade de demonstrar amor, pensou só para si a velhota. Dona Carlota havia reparado também que a menina, apesar de ser muito bonita, se apresentava com o cabelo muito oleoso e as roupas demasiado roçadas. Por isso, antes de resolver a questão de a devolver à mãe, decidiu que ela sairia de sua casa com outro aspecto. Encheu a sua velha banheira com água quente e deixou a menina chapinhar nela durante uns minutos, enquanto lhe esfregava energicamente a longa melena encaracolada e cada dobra do corpo, de

Conto "Casa de Bonecas" - página 4

Às primeiras notas da melodia, Maria estava oficialmente encantada. Era como se estivesse ali apenas fisicamente. O seu espírito vagueava galopando livremente sobre um mundo com o qual sempre sonhara. Um mundo onde tudo é belo, onde todas as pessoas são bondosas e onde as crianças podem comer gomas ao pequeno-almoço sem reprimendas maternais. A imaginação de Maria viajava agora a bordo de uma espiral giratória multicolorida que a transportava para uma outra dimensão. - Ouviste o que eu te disse, Maria? – Perguntou Dona Carlota, interrompendo o sonho diurno da menina. Por instantes, a senhora temeu pela integridade da caixinha, tal era a forma como as mãos de Maria se evidenciavam trémulas. Um mero reflexo do turbilhão de emoções das últimas horas. - Oh, que linda caixinha! Eu sempre sonhei ter uma destas! – Exclamou Maria, antes de libertar um sonante e profundo suspiro. - Pois bem, Maria, como Deus nunca me deu filhas nem netas, vou propor-te um acordo: Um dia, quando a minha vida che

Conto "Casa de Bonecas" - página 3

- Olá princezinha! Então chamas-te Maria. E quantos anos tens, minha querida? – Perguntou Dona Carlota, tentando meter conversa da forma mais natural possível. - Tenho sete, quase oito. Faço anos no mês que vem – tratou de esclarecer a menina com prontidão. - Uhmmm! Então já sabes ler e escrever, certo? - Continuou a avó. - Claro! E até sou uma das melhores alunas da minha sala – disse Maria com visível orgulho. Deixando-se levar pela magia daquele inesperado encontro com uma criança de tenra idade, a avó decidiu não fazer perguntas difíceis ao neto em frente da menina. Guardou-as para mais tarde, quando estivessem os dois a sós. E prosseguiu a conversa apressando-se a fazer as honras à casa. Era sempre com grande emoção que revelava os cantos e recantos da sua loja encantada, partilhando histórias que por ali se passaram ao longo de mais de cinquenta anos. Energicamente, apesar dos seus oitenta e muitos anos, foi fazendo disparar interruptores à sua passagem. Maria caminhava, pé ante

Conto "Casa de Bonecas" - página 2

- Sim, Maria, acho que posso ajudar – respondeu Pedro, ainda sem saber como. Recorrer às autoridades seria a ideia mais simples e óbvia. Mas Pedro temia que a criança ficasse ainda mais assustada ao aperceber-se da gravidade da situação. E foi de repente que se lembrou: - Tu disseste que procuravas uma casa de brinquedos? - Sim! – Assentiu Maria, já com outro entusiasmo na voz. - Pois olha, lembrei-me agora, sabes que a minha avó é dona de uma loja de brinquedos há já muitos anos? - A sério? – Exclamou Maria incrédula, em jeito de interrogação. - Sim, é verdade! É uma loja um bocado velha, cheia de brinquedos antigos, uns novos e outros usados que as pessoas vão lá vender quando já não os querem. Gostavas de ir comigo lá à loja e conhecer a minha avó? – Perguntou Pedro, sabendo de antemão qual seria a resposta. - Sim! Claro que quero! – Gritou Maria, com os olhos a cintilar. Por momentos, o medo cedeu lugar ao entusiasmo e fez esquecer tudo o resto. - Então vamos – disse Pedro, acompan

Conto "Casa de Bonecas" - página 1

Maria andava há horas sem saber onde estava. Caminhava cheia de fome, de frio e de medo quando foi abordada por um homem que se atravessou no caminho. - Olá, como te chamas? - Perguntou Pedro, tentando meter conversa com a menina de ar amedrontado que aparentava ter não mais que sete ou oito anos. - Eu sou a Maria, mas a minha mãe disse-me para não falar com estranhos - respondeu hesitante, colocando um ar muito sério. - A tua mãe tem toda a razão, Maria. Mas onde é que ela está? - Insistiu Pedro. - Deve estar em casa a fazer o jantar. Já é de noite e quando começa a ficar escuro ela vai para a cozinha fazer a sopa - esclareceu Maria. Perante uma resposta que não justificava o facto de uma criança tão pequena vaguear sozinha pelas perigosas ruas da cidade àquela hora, Pedro voltou a insistir: - Mas onde fica a tua casa, Maria? A pergunta despertou nela a fragilidade que vinha a disfarçar e que culminou num enorme pranto. - Eu não sei - disse soluçando, enquanto encobria o rosto com amb

15 minutos

Tanto que sonhei, tanto que desejei. E nada acontece. Nada do que desejei que fosse a minha vida. A cada encruzilhada pareço seguir sempre o caminho mais sinuoso. Certo dia terei ouvido dizer que “os caminhos mais difíceis são aqueles que nos levam mais longe” . Serão mesmo? Questiono. Não serão antes os que nos fazem perder mais tempo. Este precioso intervalo de tempo que nos separa do fim e que, por maior que seja, nunca é demais. Sinto falta de animação. Sinto os dias a passar só por passar. Sei-me capaz de tanto e pareço não conseguir fazer nada. Vejo-me em tantos outros sítios longe daqui. Consigo visualizar-me na pele da pessoa que gostaria de ser. Só não sei como consigo lá chegar e fundir-me nela até que sejamos uma só. Talvez nunca chegue. Talvez chegue tarde de mais. Ou talvez surpreendentemente consiga lá chegar subitamente, de rompante, sem aviso prévio, quando menos esperar. A vida é boa. A vida é má. A vida tem dias… Gosto de viver no limite das emoções. Gosto daqueles in