Avançar para o conteúdo principal

Mensagens

A mostrar mensagens de março, 2012

Esta terra que me acolhe

Quantas vezes o sítio onde vivemos não é escolha mas destino? Soma de contas mal feitas, adições ou subtracções mal resolvidas, erros de cálculo, opções que sobram nos destroços, no entulho que resta de tudo o que um dia idealizámos. E aprendemos a aceitar. Que remédio. A adaptação fica-nos tão bem. É um fato engomado que nos assenta sempre bem. Adaptar-nos é a última das sortes, mesmo quando a vontade não vem, nem com o passar do tempo. O tempo, o tempo. Com ele acabamos por aceitar tudo, até a morte que sabemos certa e que nos espera a todos sem segunda opção. Hoje o vento não me está de feição. Nem esta paz fluvial que traz cheiro a maresia é capaz de me aquietar os sentidos. Da minha janela ao mar são poucos quilómetros. E isso poderia bastar-me para sorrir. O sol que raia lá fora a espaços por entre as nuvens que dançam em seu redor poderia bastar-me. O vento que passa, que assobia vaidoso poderia bastar-me. Por aqui, não há filas de carros a buzinarem-me aos ouvidos. Não há d

Companhia virtual

Eu estou aqui. E tu estás aí. Estás a ler-me? Então não estás só. Do outro lado da janela virtual, há uma mão que percorre as teclas em busca de companhia. Se o sono teima em não aparecer, na virtualidade do momento, podes enviar-me uma mensagem. Basta dizeres, “Olá, estou aqui!”. Do outro lado, à espreita, eu sou real, posso responder-te. E há toda uma cortina de esperança que se abre, um vazio de emoções que se preenche, um coração que se aquieta por encontrar um mesmo compasso. Não te conheço, não sei quem és, nem o que tens feito no mundo real. Mas tens um ar simpático. Deves ser boa pessoa, eu não tenho por hábito simpatizar com qualquer um. Gostava de saber como és. Qual é a imagem que se esconde atrás desta página em branco manchada de letras negras. Podes estar de pijama e chinelos, que eu nunca irei saber. Podes estar a fumar, a beber, podes estar até a tirar macacos do nariz, que eu, prometo, não me vou rir. Podes até estar nu, andar à vontade pela casa tal qual vieste ao m

Na fronteira

O Guadiana tem dois amores, duas margens que podem acenar-se, que podem trocar saudações em línguas diferentes. São dois países separados por um rio, unidos por um ferry, há uns anos também por uma ponte. Num abraço de betão estreitaram-se as margens, português e castelhano misturam-se muito mais desde então, num cocktail de vozes que não deixam as ruas silenciar-se. La chica que habla español chama-se Ayamonte. É uma terra pacata, onde os sábados despertam com a euforia do mercado. Bancadas de legumes alinhados por cores enchem os olhos de apetite. Enormes peças de pescado ainda a saltar de fresco são um convite ao convívio em redor do fogareiro. E há a carne, um regalo às pupilas, um deleite para as papilas: el cordero , el cerdo , la ternera . Nas esplanadas, a qualquer hora do dia, bebem-se cañas e picam-se tapas. E no vagar do fim-de-semana repara-se nos pés calçados de novo da senhora que acabou de sair da mítica sapataria de esquina. Nas gasolineiras, de manhã à noite, há sem

Quatro Primaveras

Sou tua mãe mas não te vi nascer. Pode parecer estranho, mas foi assim que aconteceu. Há quatro anos, era de noite. Ainda não era Primavera, mas estava um clima ameno, primaveril. No relógio de parede, o ponteiro pequeno estava fixo no número um e o grande apontava para o oito. Eram uma e quarenta da manhã de terça-feira, dia 11 de Março de 2008. Quando choraste pela primeira vez, eu não te ouvi. Ferrada num sono profundo, não te ouvi, nem te vi, nem peguei em ti ao colo, nem chorei de felicidade por sentir uma emoção nova, tão rara, que pode acontecer uma única vez, ou poucas vezes na vida. Lamento não ter sentido as dores. Lamento, ainda mais, não ter conhecido a explosão de emoções que as sucedem. Estava anestesiada, esventrada e longe do meu bebé. Lamento tudo isso, mas sei que foi por bem. Os corpos escondidos por detrás de todas aquelas batas brancas, sem nome, sem voz, quase sem rosto, salvaram-te a vida. Bendita seja a medicina. Despertei nauseada, horas depois. De um lado, e

Quantos quilómetros tem uma vida?

Partida. Caminhas só no meio da multidão, isolada nos teus pensamentos. Esses anónimos não te dizem nada. Apenas guiam os teus passos como um traço contínuo, confirmando o trilho a seguir. Em jeito de distracção, decides prestar atenção aos sons que te rodeiam. Um exército de pés, passos ritmados, passos pesados, esmigalham calhaus derramados pelo tempo sobre a terra batida. Um ruído de bocas a mastigar cereais crocantes vai ecoando. As pedras rolam, as pernas rolam, vai rolando a distância debaixo dos pés. O que te move? Saberes-te capaz de atingir uma meta, de cumprir uma etapa, de chegar ao fim de um caminho qualquer. Lá ao longe, bem ao fundo, avistas o cerro. Nuvens cinzentas pairam sobre ele, cobrem-no de sombra. Circulam, parecem querer dançar: a dança da chuva. O teu coração acelera ao ritmo do cansaço. Mais uma subida ofegante. Inspiras agora a plenos pulmões e consegues farejar os odores da manhã campestre. Há ervas que libertam um cheiro verde húmido. Narinas adentro, entr

Desastre celular

Caminhava completamente desengonçado, como se cada um dos ossos fosse mais disforme que o próprio rosto. Rente à estrada, debaixo de um céu pesado, carregado de chuva, caminhava de mochila às costas, meio rapaz, meio homem, meio monstro, sem idade certa. De repente, hesita o passo, pára, parece querer precipitar-se sobre a estrada. Por instantes chego a temer um suicídio. Falso alarme. Ele trava. Com olhar de louco, absorve de uma rajada todo o quarteirão. Estranho ser, carregando sobre os ombros o peso de tamanha fealdade, carga maior que a da mochila que se adivinha meio vazia. Esta figura (im)perfeita de contos de meia-noite, segue viagem, estrada fora, perco-lhe o rasto, fica-me apenas a memória. Jamais esquecerei ter visto um ser humano de traços tão contraditórios. Só por capricho, apetece-me afrontar a crença: feitos à imagem e semelhança do Senhor? Se assim fosse, porquê existir a perfeição e a aberração, o belo e o mostrengo e permitir que ambos se cruzem e convivam até ao p

Dá-me colo

Sensação boa a cumplicidade que se estabelece com alguém que está doente. Ficamos um degrau acima, num nível superlativo de superioridade, mas na aflição tudo se estreita, sobretudo os laços entre as pessoas. E se eu for a mãe e a pessoa doente o meu filho, o colo alarga-se, capaz de acolher o mundo. Encontra-se tempo que não existe, debaixo das mantas às quatro da tarde. Surreal ver o mundo correr lá fora, numa miragem espreitada da janela do quarto. Dentro de casa, as horas esticam, ficam gigantes. Há mais minutos, muitas vezes sessenta, numa só hora longe do trabalho, à distância dos esforços que pedem pressa. Todos os filhos são bebés quando estão doentes. Mesmo que tenham 30 ou 40 anos, naquele momento voltam a ter fraldas e faces rosadas e cheirinho de leite morno. E revelam-se em nós talentos escondidos. De repente, somos exímios narradores das histórias de encantar. Recordamos como éramos felizes a ver desenhos animados. Paramos e percebemos porque tudo parecia tão fácil. N