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Mensagens

A mostrar mensagens de 2020

O ano da máscara

Desejo libertar-me deste ano atípico, com o alívio com que descarto cada máscara para o lixo. Um ano perdido que nos fez reféns de um vírus, onde é que já se viu? Não basta a vida ser curta para realizarmos tantos sonhos? O futuro adiado aniquilou-nos o ânimo. As oportunidades perdidas roubaram-nos o alento. Mas a esperança é uma chama que não se apaga de um sopro. Continua a arder-nos cá dentro, ainda que tudo em redor seja pedra e gelo. O ambiente é inóspito, a estrada que se vislumbra para chegar a algum lugar é longa demais, as forças soçobram, mas a ideia de recomeço acalenta-nos sempre com um bafo de novas possibilidades. Havemos de bater às portas desejosas por se abrir e conhecer as pessoas certas que nos ajudem a cumprir propósitos. Havemos de ser capazes de concretizar aquele projeto há tanto adiado apenas por preguiça. Havemos de aprender a transformar as fraquezas em forças e as ameaças em oportunidades, jogando a nosso favor o marketing da vida. Havemos de ser criativos e

Desabafos salteados

Julgava eu que sabia o caminho. Andava às voltas, sem sair do lugar. Desejos sem sentido, ambições sem valor. Um dia, ao despertar, a estrada surgiu como uma revelação. Em redor, tudo era luz e direção. Tudo era espaço e liberdade. Tudo era viagem infinita para o destino dos sonhos. Num instante, tudo se fez lugar de repouso para o meu coração selvagem. 

CLARIVIDÊNCIA

Tudo me parece agora tão claro, como se finalmente tivesse escancarado as janelas da existência. Lá fora, a vida nunca deixará de ser um caos. O desafio é ser-se, dentro, caminho de harmonia, nascente de beleza, ponte entre as mãos que desejam unir-se. Agora compreendo que não posso, não devo, nem quero, agradar ao mundo inteiro. Essa será sempre a mais impossível e inglória das missões. O importante é a fidelidade aos meus princípios, aos meus propósitos, à verdade e liberdade que nasci para ser. A bondade dos meus gestos confirma-se nos que me rodeiam ficando sempre. Os outros desconhecem-me e não se pode amar quem não se conhece. Tudo o que fui e já não sou ensinou-me o essencial para persistir. No jogo da vida, não vale desistir, nem fazer batota. Perder ou ganhar é intermitentemente relativo. Só a distância temporal permite ajuizar resultados. A procura é inútil quando não sabemos quem somos. E tudo nos encontra quando arrumamos os medos e ressoamos confiança. Ao voltar a soprar

A POLÍTICA PRECISA DE TI

Tudo é política e a política precisa de todos. Sobretudo daqueles que se julgam menos chamados e capacitados a participar. A política precisa da energia dos jovens, da polivalência das mulheres e da sabedoria dos idosos. Ao contrário do que muitos pensam, a política não é uma profissão restrita, é uma missão, por isso pode e deve ser abraçada por todos, em qualquer fase da vida.  A melhor forma de contribuir para a mudança é cada um de nós ser parte da mudança, denunciando as injustiças, apresentando ideias e propostas inovadoras, oferecendo o nosso tempo, energia e competências para implementar uma nova realidade social. Não é no café, no salão de cabeleireiro ou nas redes sociais que os problemas se resolvem. O burburinho espalha-se, no diz que disse, e rapidamente morre no esquecimento, adormecido por uma promessa vã ou uma alegria efémera.  Todos têm algo extremamente útil a dar, para que todos possamos melhor receber, numa medida mais justa e adequada. Esqueçam a ideia de que não

Jaime coração de leão

Os pombos já não voam sobre o telhado e o teu olhar já não se detém inerte na sonolência das tardes a contemplá-los. Em pose fúnebre, de olhos cerrados e mãos entrelaçadas sobre o peito, já não te encontramos adormecido na sombra espreguiçada do quintal. A sala envelhecida na escuridão dos móveis está agora deserta e o silêncio doméstico ecoa saudade. O teu lugar cativo na poltrona está livre e a televisão desligada já não relata o entusiasmo dos golos que, de boné orgulhosamente verde, aclamavas ou contestavas de palavrão destravado na ponta da língua. A tua canina fiel companheira já não adormece vigilante a teus pés, na certeza de um afagado despertar, nem te interrompe as noites com necessidades inoportunas. As espingardas já não disparam vitórias nem a alegria do passar dos anos no céu campestre. Permanecem, na salinha da desarrumação, descarregadas e hirtas, a aguardar destino, por entre pósteres, troféus e outras relíquias desportivas. A bicicleta de estrada já não pedala, suspe

DESCONSOLOS

A vida está a entardecer e tudo em mim é dor e cansaço, mascarados de riso. Há dias em que só penso tristezas, vasculhando baús de sonhos enrugados ao abandono da esperança. As páginas da vida resumem-se a umas folhas de habilidades que de pouco ou nada valem ao sustento. Entre defuntos e furtivos, os amores não passam de promessas nómadas de felicidade. Na escassez de moeda, a riqueza mede-se em saúde e nos amigos que persistem intemporais. Do lado de fora da casa, encontro a noite soprando lá fora. E cá dentro, crepitando, um ardor sem consolo, morrerá fingindo não existir.

Leitura @ Teatro Lethes TV - 5.06.2020

Durante o isolamento social, o Teatro Lethes convidou algumas pessoas a gravar uma leitura caseira, para combater o silêncio cultural. Eis o meu contributo para a iniciativa "Estou vivo e escrevo sol", com o texto "Quando não escrevo", do meu livro "SobreViver".

Entrevista @ Rádio Ourique - 18.05.2020

Na noite de 18 de maio, estive em "Estado de Arte", a discorrer sobre a vida e a escrita, em direto, na Rádio Ourique:  https://soundcloud.com/claudia-sofia-sousa-132816475/sets/entrevista-radio-ourique

CRÓNICAS DA PANDEMIA - VII

Já nos habituámos a isto mas não queremos viver assim para sempre. Se era só um castigo para que nos portemos melhor, de agora em diante, já pode acabar, que nós prometemos cumprir. Ó vida, volta que estás perdoada e devolve-me os amigos e todos os abraços, as missas e as procissões, os jantares-convívio e as festas de aniversário, as reuniões de grupo e os festivais de  música, do marisco, da sardinha, do caracol, da cerveja, do Pontal, ou whatever... Traz-me de volta o trabalho, a sério, que isto de brincar às empresas sem clientes à procura daquilo que temos para lhes vender é um tédio. De onde é que nasce o dinheiro? Boa! Com tanta reinvenção, vai na volta, é desta que vamos todos plantar árvores das patacas... Será que os chineses já inventaram isso? Vá lá, todo o veneno tem um antídoto. Quem se lembrou de magicar este vírus está de parabéns. Que ideia brilhante, resultou! Mas agora já chega de brincadeira que nós queremos viver. Libertem lá a porra da vacina que o pessoal está

CRÓNICAS DA PANDEMIA - VI

Explodem-nos cravos no coração, num arrepio que antecede a lágrima, enquanto choramos em coro à janela o cântico da liberdade. O hino de uma nação em prisão domiciliária faz eco na memória, evocando pensamentos distantes. Entre a saudade do passado e a ânsia do futuro, aqui estamos, prostrados, numa resignação confinada, de olhos postos num ecrã, à espera que volte a ser Abril, à solta nas ruas.

CRÓNICAS DA PANDEMIA - V

E morrem pessoas e pessoas. Números e números. E por vezes um escritor, um médico, um artista. Hoje foi o Sepúlveda. Alguém com nome que será lembrado pelo trabalho exemplar. O resto são multidões anónimas, montanhas de números, nesta chuva de notícias que nos inunda os dias, numa primavera sem flores. Estamos todos reféns da raiva de um vírus, serial killer imprevisível e indomável, que nos retém em cativeiro, a contar caixões à distância, sem direito a despedidas, na espera infinita dos dias que ainda faltam para o recomeço do futuro.

CRÓNICAS DA PANDEMIA - IV

Se há ensinamento que podemos retirar da sexta-feira Santa, sejamos crentes ou não, é o de que devemos amar a nossa cruz. Não há, nem nunca haverá vidas perfeitas, desenganem-se os que continuam a acreditar no contrário. No reverso de cada sorriso, há sempre uma tragédia oculta. Na aparência bem sucedida de cada ser humano, há sempre uma longa e sofrida caminhada, feita de suor e lágrimas. A nossa maior sorte nunca será escapar ao perigo ou à dor, mas conseguir alcançar o espírito de fortaleza, capaz de ultrapassar serenamente a adversidade. Esse é o maior desafio das nossas vidas. O tempo que atravessamos é só um treino. Se aprendermos a abraçar e amar todas as dificuldades, como uma enorme oportunidade, ainda que desfaleçamos de cansaço a meio do percurso, no final do caminho poderemos ressuscitar para uma vida nova, ainda mais plena, confiante e gloriosa.

CRÓNICAS DA PANDEMIA - III

Mesmo em casa, os dias passam a correr, mas este tempo parece nunca mais ter fim. O horizonte é o dia de amanhã e ninguém consegue ver mais além. Acordar vivo e de boa saúde, no conforto do lar, já é tão bom que nem arriscamos sonhar mais alto. Proponho-me fazer demasiadas coisas e chego ao fim do dia com intermináveis listas de afazeres incompletas. Amanhã também é dia, logo faço. Como é que se desliga o botão da cabeça, para nos voltarmos a focar objetivamente em algo produtivo? Dos e-mails ganhei pavor, sobretudo quando começam a cair faturas como pedras. Receber menos (ou alguns até nada) e continuar a pagar, pagar, pagar... Quem é que aguenta? Quem é que resolve, se a culpa não é de ninguém? Há quem invente costurar máscaras ou outras utilidades mas, tirando o negócio da morte, da saúde e dos bens essenciais, nada é ganha pão por estes dias. Nem aos artistas lhes servem os dons. O palco da vida está vazio e o espetáculo foi cancelado. Até ordem a perder de vista, continua

CRÓNICAS DA PANDEMIA - II

É domingo e tenho saudades de ir à missa. Muitos vão rir, outros vão ter a tentação de gozar com este meu desabafo, mas é verdade. Os cristãos por convicção, ao contrário dos cristãos por tradição, vão à missa porque gostam e sentem um vazio enorme quando, por alguma razão, não podem ir. Até isso a Pandemia nos roubou: o prazer de ir à missa. Aquela hora de encontro marcado com Deus, porque connosco próprios, de corpo e pensamento serenados no mais profundo de nós. Hoje a missa veio até mim pela Internet. Modernices necessárias em tempo de isolamento. Mas não é a mesma coisa. Nunca será a mesma coisa. Porque a missa é também um reencontro de amigos, um fruir de uma energia coletiva que dá força, um ritual de gestos, simbologias, cânticos e repicar de sinos, que encerra toda uma beleza. Hoje é domingo de ramos (sem ramos), o início da semana Santa mais atípica e virtual que muitos cristãos já viveram.

CRÓNICAS DA PANDEMIA - I

Rostos semi-cobertos mascaram o medo, asfixiados numa vigilância desconfiada do outro. A fila para o supermercado ainda demora e meio passo à frente ou atrás garante a distância necessária. O segurança, também mascarado, pulveriza as mãos de quem acaba de alcançar a sua vez. Ao entrar a conta-gotas, os clientes parecem mais, mas são os mesmos de sempre, talvez menos até. Lá fora, também o pedinte é o de sempre, talvez agora com mais fome. Ninguém dá moedas porque não as tem. Agora só se usa cartão e isso desculpa a falta de vontade de partilhar seja o que for. Todos temem vir a precisar depois. Lá dentro, esquecem-se as distâncias e os corredores entopem. Andamos sempre a fugir uns dos outros, receosos de um toque ou de um espirro. Pegamos nas coisas com dedos de nojo, imaginando o tédio de as desinfectar uma por uma. E tentamos ser rápidos e concisos, tentando não esquecer nenhum ingrediente para a ementa semanal. Nas caixas, os operadores estão escudados de acrílico, quais políci

ESTADO DE EMERGÊNCIA

Pandemia COVID-19 Sabes o que mais me incomoda, amor? Não é o vírus, nem o medo da morte. É saber-te longe e privada dos teus beijos. Se sobrevivermos à saudade e às filas do supermercado, estaremos prontos para sobreviver a todas as tormentas que a vida sempre nos impõe. À distância de um ecrã, trocaremos promessas de reencontro, entre sorrisos virtuais. Desafio os cientistas, depois de criarem a vacina que nos falta, a reinventar as videochamadas com tato e odor. O que estamos a viver, de tão surreal, mais parece o fim do mundo. Resta-nos a esperança e a força de acreditar que, depois desta revolução sem armas nem balas, vamos finalmente despertar para a nova Era, onde juntos o futuro nos aguarda, para sermos felizes como nunca sequer ousámos sonhar.

A ofegante maratona das horas

Prisioneira dos dias, vejo a vida passar em revolução. No grito que urge de cada instante, nada se queda sereno. Ainda ontem o amanhã era futuro. Hoje o sonho é tempo passado, nesta ofegante maratona das horas que faz a existência esgotar-se tão depressa.