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Sou o que sou


Se ao menos alguém me conseguisse explicar a lógica de funcionamento deste espaço chamado Mundo. Mas não, até hoje não houve vivalma que me desse uma justificação plausível para certas atitudes do ser humano. Ser humano, mas o que é isso afinal de ser humano? É ser mais do que bicho? Ser mais em que aspecto? Não seria mais fácil limitarmo-nos a viver como a maioria dos animais, movidos a instintos e necessidades básicas? Ah não, nós somos mais inteligentes. Criámos regras para depois não as cumprirmos. Somos sensíveis, pois é. Inventámos sentimentos para depois passarmos metade da vida a fugir deles e a outra metade a escondê-los garganta abaixo ou olhos adentro, afogando lágrimas secas que temos vergonha de despejar. Temos medo de ser apenas o que somos. E o que somos nós? Somos aquilo em que acreditamos. Não somos o que gostaríamos de ser ou ter sido, de fazer ou ter feito, de ter tido ou vir a ter. Somos a soma de todas as escolhas que fazemos ou deixámos de fazer. Vencedores ou vencidos, depende da perspectiva. Voa mais quem está no topo de asas amarradas ou quem lá de baixo olha o céu e é livre de sonhar como deve ser bom voar? É preciso coragem para ser livre. É preciso audácia para escolher continuar livre, renunciando aos acenos de promessas de ouro que não são mais que presentes envenenados à porta da prisão. O problema é que já quase ninguém acredita em nada e por isso quase  ninguém chega a ser alguém. Nascemos com a dádiva da grande oportunidade: podemos ser o que quisermos. E no que é que nos tornamos? Naquilo que o mundo quer fazer de nós, qual ferro malhado a quente. Impor uma vontade é como dar um grito que ninguém quer ouvir. Dizer não, custa. O não sabe mal aos ouvidos. Parece feito de pregos que se vão espetando a martelo. Mas quando é essa a minha vontade e o não me sai como um alívio de gases soltos, o meu ser dá pulos de alegria porque finalmente decidiu assumir-se. E nada mais me importa quando consigo ser apenas tudo aquilo em que acredito.     
 

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Reportagem # 32

Jornal "Dica da Semana", edição regional Algarve, 29 de Janeiro de 2015

FRIDAY EATS

A refeição que pedala a rua à minha frente vai saciar o cansaço de alguém que trocou horas de fome por uns tostões. A energia que sobra é a da ponta dos dedos. Três toques no ecrã e o jantar está pronto. A marmita verde atravessa a cidade, pela força estoica do homem que não fala português. Também não precisa. Basta tocar à campainha e dizer a palavra mágica de significado universal. Num silêncio solene, digno de um requintado mordomo, abre o saco térmico e serve o jantar. O pobre senhor que ganha uns tostões, hoje sente-se um rei. Espreguiçado no sofá, a lambuzar-se num menu cancerígeno qualquer, reencontra um espasmo de felicidade. Ah, como é boa a sexta-feira! Mham 

PERTENÇA VIRTUAL

Apaixonaram-se ao primeiro clique.  No início, tudo tinha a leveza eufórica da novidade. Tudo tinha o ingénuo encanto do desconhecido. Enquanto deslindavam os detalhes virtuosos da vida privada um do outro, em mensagens infinitas, contemplavam-se teclando, trocando imagens e palavras e emojis. Foram dias áureos de expectativa crescente. Quando será o nosso encontro real? A magia começava a desvanecer-se ao surgir a questão. Alguém não deseja abdicar do perfeccionismo platónico. Camuflados na virtualidade somos todos muito bons. Para quê sair do casulo para dar a conhecer o pior de nós? O melhor é encerrar o assunto enquanto ainda paira a beleza inicial. Um vai-se esfumando e saí de mansinho. As respostas chegam cada vez mais demoradas até não chegarem mais. Encontros românticos são para gente corajosa na vida real. O que aconteceu aqui foi só uma ilusão. A ludibriosa crença de ser possível uma pertença virtual.  (Publicado na revista ESPÚRIA, outubro 2023)