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A mulher de 35 anos

Esperavas aqui chegar uma senhora de saltos altos, mas dás-te conta que ainda és apenas uma menina em bicos dos pés, tentando revelar talentos. Já não corres como aos vinte; o corpo deixou de acompanhar a pressa dos sonhos por realizar. A espera tem agora a serenidade que só a idade ensina: tudo tem o seu tempo. Não adianta desejar o que não estamos preparados para receber. Quando já esperavas só certezas, sobram-te as dúvidas. Paras mais vezes para pensar, mas a dificuldade reside numa questão sem resposta: é o mundo que muda depressa demais ou teu pensamento? Mil ideias, mil vontades, mil vezes mil pensamentos te invadem a cada instante. O que está certo ou errado, já devias saber de cor. Não te aflijas! Ninguém sabe ao certo, ainda que diga que sim. A vida é esta constante aprendizagem que não se limita à infância. No que toca a saber viver, somos crianças até à morte. Ao chegares aqui, o amor já deveria ser aquele lugar seguro aonde não chega o medo. Gostavas que fosse terra firme, pegada certa num só chão. Mas o amor é feito de emoções movediças, num vaivém de marés que arrasta sentimentos definitivos. Com cada vez menos porquês, já entendes que há pessoas que são lições de vida. Entram em nós para revelar caminhos, para nos espelhar defeitos a corrigir. E podem ficar uma vida ou partir depressa. O tempo da aula depende do tamanho da lição. Estás a meio de um caminho sem volta. Se, por um lado, sobes tentando atingir um topo, por outro, estás cada vez mais perto da meta final. Por isso, pensas: vai mais devagar. Contempla mais, respira mais, sente mais. O caminho não te foge. E mesmo que tenda a desviar-se, haverá sempre um atalho de reencontro mais adiante. És uma mulher de trinta e cinco anos. Rosto de menina com traços vincados de senhora. Atitudes infantis com requintes de adulto. Medos humanos camuflados numa força bruta animal.     

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