Avançar para o conteúdo principal

O Meu Pai


Lembro-me de como me acordavas, de forma irritante, puxando-me os dedos dos pés. Era uma forma original de dizer em silêncio “salta da cama”. Aliás, os teus silêncios sempre me disseram mais que as tuas palavras parcas, nem sempre muito doces. As nossas conversas sempre foram pontuais, casuais mas sempre muito regeneradoras das feridas causadas pelos percalços da vida. As tuas palavras, meu Pai, as tuas poucas palavras sempre foram sábias. Sempre tiveste explicação e solução para tudo. Quando eu tinha uns dez anos, recordo-me de ter dificuldade em adormecer. Temia o simples facto de fechar os olhos. Tinha medo de adormecer e morrer durante o sono. E depois, lutava contra o cansaço, ao ponto de ficar acordada, depois de toda a família ter já adormecido. Em pânico, rumava ao vosso quarto e tentava acordar-vos, de mansinho, sem sobressaltos. “Mãe, Pai, está toda a gente a dormir e eu estou sozinha no mundo!” – soluçava, entre uma e outra lágrima que me escorria pelo rosto.
Foi numa dessas noites que me ensinaste um truque especial para adormecer. Nunca mais me esqueci. Também nunca mais pratiquei. Porque o sono vem com mais facilidade com o passar dos anos. Vamos carregando com o peso do tempo que passa e isso deixa-nos mais cansados. “Fecha os olhos e vai imaginando uma linha de luz imaginária que sobe através do teu corpo, começando lentamente na ponta dos pés” – dizias-me, num tom de voz tranquilo, confiante de que o método era infalível. “Concentra-te na ponta dos pés”, reforçavas, ao perceberes que não estava convencida de que iria resultar. A verdade é que resultava. Não sei se seria do truque, ou do conforto da tua presença, mas em pouco tempo eu adormecia.
Também me recordo da sola de um chinelo que um dia me ficou tatuada na nádega direita. Devo ter feito algo que te irritou muito, meu Pai. Já não me lembro o quê. Nem da dor que a chinelada me causou. Hoje até recordo esse episódio com um sorriso nos lábios. Faz parte da nossa história e não te quero mal por isso.
Lembro-me ainda do dia em que me disseste que podia conduzir o teu carro. Tinha apenas dezasseis anos. Ocupaste o outro banco e deste-me liberdade para aprender, seguindo as tuas indicações. E eu fiz tudo certinho e nunca mais me esqueci.
Hoje continuas a ensinar-me muito. Que devo superar-me em tudo o que faço. Que devo aprender tudo o que posso e também o que julgo não poder. E que devo aprender a ter calma para viver a vida e aceitar serenamente tudo o que ela me quiser mostrar.
Nunca te disse isto antes, meu Pai. Também não sou de dizer tudo o que sinto. Mas fazes-me falta, meu Pai. Ainda tens tanto para me ensinar…

Comentários

Mensagens populares deste blogue

Reportagem # 32

Jornal "Dica da Semana", edição regional Algarve, 29 de Janeiro de 2015

FRIDAY EATS

A refeição que pedala a rua à minha frente vai saciar o cansaço de alguém que trocou horas de fome por uns tostões. A energia que sobra é a da ponta dos dedos. Três toques no ecrã e o jantar está pronto. A marmita verde atravessa a cidade, pela força estoica do homem que não fala português. Também não precisa. Basta tocar à campainha e dizer a palavra mágica de significado universal. Num silêncio solene, digno de um requintado mordomo, abre o saco térmico e serve o jantar. O pobre senhor que ganha uns tostões, hoje sente-se um rei. Espreguiçado no sofá, a lambuzar-se num menu cancerígeno qualquer, reencontra um espasmo de felicidade. Ah, como é boa a sexta-feira! Mham 

PERTENÇA VIRTUAL

Apaixonaram-se ao primeiro clique.  No início, tudo tinha a leveza eufórica da novidade. Tudo tinha o ingénuo encanto do desconhecido. Enquanto deslindavam os detalhes virtuosos da vida privada um do outro, em mensagens infinitas, contemplavam-se teclando, trocando imagens e palavras e emojis. Foram dias áureos de expectativa crescente. Quando será o nosso encontro real? A magia começava a desvanecer-se ao surgir a questão. Alguém não deseja abdicar do perfeccionismo platónico. Camuflados na virtualidade somos todos muito bons. Para quê sair do casulo para dar a conhecer o pior de nós? O melhor é encerrar o assunto enquanto ainda paira a beleza inicial. Um vai-se esfumando e saí de mansinho. As respostas chegam cada vez mais demoradas até não chegarem mais. Encontros românticos são para gente corajosa na vida real. O que aconteceu aqui foi só uma ilusão. A ludibriosa crença de ser possível uma pertença virtual.  (Publicado na revista ESPÚRIA, outubro 2023)