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Canção de embarcar


3º Prémio - Modalidade Prosa - Concurso Literário "Cantar Portugal em Prosa e Verso" do Elos Clube de Faro

Do alto de um imenso rochedo, avisto um mar imenso, de um azul intenso, a perder de vista. Antes de se esconder de vez, o Sol beija o mar, ao de leve, com respeito. E eu espreito, por cima do ombro, enquanto suspeito que o perigo se aproxima. É apenas o medo.
Do alto deste imenso rochedo, sou Infante, eterno gigante, saudoso das ondas vencidas, memórias perdidas no fundo do mar.
Longe vão os tempos em que fui herói. Fui exemplo seguido por pegadas anónimas, que livremente decidiram acompanhar-me rumo ao desconhecido.
Hoje sou mera lembrança, recorte de esperança, que serve de consolo a quem já nada tem, nem sonha, nem sente.
Quando mais nada nos resta, sobra-nos o mar. Esse eterno meio de fuga que leva gente e traz saudade.
Saudade, essa palavra tão vasta, nefasta, que é só nossa, que nos pertence como um fado que temos de carregar. Um fardo, pesado, demasiado grande para caber em nós.
Se soubesse escrever música, o meu país seria um assobio de vento, que vai e vem, acompanhado de um sonante lamento, libertado por alguém.
Uma gaivota que pousa a meu lado, amortece a solidão dos meus pensamentos, cada vez mais lentos. O meu semblante é hoje mais pesado, meu rosto rubro, de aspecto cansado, envelhecido pelo Sol. Sou apenas uma miragem do que fui.
A brisa suave, que de súbito me acaricia, relembra-me que tenho o cheiro a maresia entranhado em mim.
Um dia tive de partir, recordo. Os meus sonhos já não cabiam na linha do horizonte. Quase sem bagagem, segui viagem sem destino certo. Para trás deixei um país pequeno, demasiado ameno para alimentar a chama que, a cada passo, se acendia em mim.
Acabei por me encontrar no fundo do tempo, no passar das horas que sobejam quando nos libertamos dos vícios terrenos. Quando um dia me despedir da vida, vou brindá-la com um sorriso, ela foi boa para mim.
Em nome da História, e dos heróis de que há memória, o nosso destino será sempre lá longe, onde a vista deixa de alcançar. O nosso destino será sempre ausente, será sempre além-mar.

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