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O lado bom da crise

Pode parecer um lugar comum, mas a vida têm-me ensinado que é nos piores momentos que se aprendem as melhores lições. Foi com base neste pressuposto que me ocorreu analisar a crise económica - de que todos falam mas poucos entendem - à luz do que, a meu ver, é realmente essencial. Na verdade, mais do que tentar perceber quem provocou a crise e como vamos sair dela, importa analisar a situação e despertar a nossa consciência para o que todos andamos a fazer de errado. Porque se queremos realmente falar de culpa, os reais culpados somos todos nós.
Não sei bem há quantos anos foi - ainda por cá ando há relativamente poucos - que o ser humano deixou de assentar a construção do seu bem-estar apenas na satisfação das necessidades básicas. Houve um dia em que o homem acordou e começou a projectar no que possuía a fonte da felicidade suprema. E assim se criaram as mais variadas necessidades desnecessárias. Crianças que crescem solitárias, compensadas com milhares de brinquedos; Homens que se exibem ao volante de luxuosos carros; Mulheres que desafiam os limites do equilíbrio em saltos imensamente mais altos do que alguém com juízo poderia suportar. Em nome do luxo, do bom e do belo, tudo se aguenta, até a factura que cresce, mês após mês, descontroladamente. São montras que nos sorriem a acenar com objectos de desejo, quase como se nos quisessem seduzir contra-vontade. E nós, que já não conseguimos encontrar alegria apenas no passar dos dias, sonhamos, desejamos e saciamos o vício, loucamente deliciados, numa alucinante overdose de felicidade efémera. A euforia é breve. A ressaca não tarda em chegar. E o ciclo repete-se, até à falência das forças e das cifras que a alimentam.
Pagar mais por bens até agora considerados essenciais também pode ser uma lição. O truque é equacionar se andamos a comprar o produto de que necessitamos ou o que tem a melhor campanha de marketing. É simples. Taxar leite infantil dito “especial de crescimento” no valor máximo, significa apenas que as crianças podem continuar a crescer, como sempre cresceram, a beber leite do dia, muito mais fresco e que até custa metade do preço. Outro exemplo. Serão também os néctares de fruta uma bebida essencial? Antigamente, nada disso havia e as crianças cresciam saudáveis e felizes a beber sumos espremidos directamente da fruta para o copo. Ou, melhor ainda, comiam fruta fresca, hábito convenientemente substituído pelo consumo de pacotes vendidos a preço exorbitante com a promessa de oferecer todos os benefícios das peças de fruta propriamente ditas. Vá lá, o que é custa afinal levar no bolso uma maçã, uma pêra ou uma banana?
Ao trabalharmos demasiado para alimentar os vícios, deixamos de ter tempo para o essencial. E é então que começamos a consumir comida de plástico que engolimos em frente ao televisor que só nos responde com notícias más. Trocamos o tempo que não temos para brincar com os nossos filhos por brinquedos e bugigangas que eles vão desprezando por toda a casa. Sentimos o fim-de-semana chegar num estado de coma permanente. Para despertar, deambulamos por centros comerciais em busca de drogas que saciem o vício e nos façam novamente encontrar a felicidade.
Não quero ser dependente destas coisas que não trazem felicidade nenhuma, apenas uma doce ilusão. Porque quando já se teve mais, aprender a viver com muito menos não é uma vergonha. É uma lição que nos abre a porta à liberdade de nos desprendermos dos bens materiais e encontrar a felicidade no tiquetaque das horas, na realidade dos dias, nos momentos verdadeiramente importantes da vida real.

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