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Limpeza geral

Dizem que tenho a mania das limpezas. No início, contestava. Respondia sempre que estavam a exagerar. Mas a verdade é que continuo a ser constantemente assaltada por uma estranha obsessão em arrumar, organizar e limpar tudo o que me rodeia. Desde os papéis que se amontoam velozmente sobre a secretária à roupa suja que me vai entupindo a cesta a um ritmo assustadoramente descontrolado. Aos meus olhos, a loiça suja que se avoluma na pia assemelha-se a um cenário de guerra. Todas as coisas que se vão encostando a um e outro canto, à espera do dia em que “logo se vê” o que fazer com elas, causam-me uma espécie de horror. O mundo, tudo o que o compõe e rodeia, é mais belo quando está em ordem. Contemplo deslumbrada o quarto arrumado onde, confortavelmente deitada numa cama a cheirar a limpo, me deito a devorar as páginas de um livro. O prazer que experimento depois da exaustão permite-me fruir da beleza do momento como se de uma obra de arte se tratasse. O mundo, este meu mundo, implora-me a cada instante para que o ponha no seu devido lugar. Tudo o que não cabe num espaço acaba por ser desprezado, tal como o amor que alguém nos entrega sem que o tenhamos pedido. Oiço repetidamente que a perfeição não existe. É mentira. Eu já a toquei várias vezes, ainda que não a tivesse conseguido agarrar. Ela vem e vai. Vai e vem. Mas no entretanto deixa-se cheirar e acariciar como um bebé que pegamos ao colo e que no instante seguinte já é adulto. Quando tenho as unhas arranjadas sinto-me perfeita. Quando tenho as pernas depiladas sinto-me perfeita. Quando tenho o cabelo penteado sinto-me perfeita. Atinjo a perfeição sempre que todas as peças encaixam no puzzle formando uma imagem indiscutivelmente bela. E quando me volto a perder no meio do caos, sou inesperadamente salva pelo o imenso céu azul que numa linda manhã de Sol irrompe pelo pára-brisas fazendo espelhar novamente a perfeição que deveria existir em todas as coisas.

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Reportagem # 32

Jornal "Dica da Semana", edição regional Algarve, 29 de Janeiro de 2015

FRIDAY EATS

A refeição que pedala a rua à minha frente vai saciar o cansaço de alguém que trocou horas de fome por uns tostões. A energia que sobra é a da ponta dos dedos. Três toques no ecrã e o jantar está pronto. A marmita verde atravessa a cidade, pela força estoica do homem que não fala português. Também não precisa. Basta tocar à campainha e dizer a palavra mágica de significado universal. Num silêncio solene, digno de um requintado mordomo, abre o saco térmico e serve o jantar. O pobre senhor que ganha uns tostões, hoje sente-se um rei. Espreguiçado no sofá, a lambuzar-se num menu cancerígeno qualquer, reencontra um espasmo de felicidade. Ah, como é boa a sexta-feira! Mham 

VERSÃO 4.5

Dizem-me frequentemente que ainda tenho cara de menina, que ainda sou nova, que ainda tenho a vida à minha frente. Contudo, face à cronologia, é-me inevitável constatar que mais de metade do tempo que me foi concedido já passou. O que me resta já será provavelmente menos. Se isso me inquieta? Não em termos de medo, mais em termos de pressa. Já não é pressa de viver mas de realizar, de me realizar. Apesar de já ter plantado árvores, tido filhos e publicado livros, sinto-me ainda distante da potencialidade plena do meu propósito existencial. O que me falta realizar então? Talvez plantar mais árvores e escrever mais livros, já que a possibilidade de gerar filhos tem prazo de validade e a energia vital para os cuidar vai esmorecendo. Tudo o que me falta fazer parece-me tanto para o tempo que imagino à minha frente. Não cabem tantos livros e filmes e viagens e experiências nas décadas que imagino ainda poder viver. O meu maior conflito interior neste momento é já não ser nova para tanta coi...