Avançar para o conteúdo principal

A última palavra

Menção Honrosa - Modalidade Prosa (Tema: Ser jornalista por um dia) - 41º Jogos Florais Internacionais de Nossa Senhora do Carmo - Fuseta, Julho 2011 (Organização: Casa Museu Profª. Maria José Fraqueza - Poetisa e Escritora)

As mãos trémulas e cansadas, que lentamente se arrastam sobre o teclado para escrever estas linhas, já não são as mesmas que outrora seguravam firmemente a caneta, desenhando histórias sobre o papel. Ai, o bloco! Que saudades do meu velho guardião das notas, que lentamente se iam transformando em frases, que iam formando textos, que iam enchendo as páginas impressas, que preenchiam as pausas dos leitores que as iam folheando. Nesse tempo, havia vagar. As horas abriam espaço para nos sentarmos e pensarmos e desfrutarmos de cada detalhe. Os dias pareciam caminhar devagar, sem a pressa dos que hoje correm. Quem corria era eu. Recordo-me bem daquele jovem enérgico que rasgava o vento para alcançar os sonhos. E eu que sonhei um dia ser jornalista. Só para fugir daquela vida monótona que se esconde e se agacha de cócoras atrás de cada secretária. A fobia de ficar paralisado encorajava-me a arriscar. Tinha medo, tinha muito medo de um dia me sentar e ficar ali colado para sempre, sem coragem para me levantar. Sonhei fazer de cada dia uma aventura. Uma viagem que não se esgotasse na medonha rotina do simples passar das horas. Viajar, conhecer pessoas. Gente nova, gente mais velha, toda a gente que habita o mundo. Toda a gente tem uma história. E eu queria ouvi-las a todas, resumi-las, repeti-las, contá-las aos outros. E assim fui enriquecendo. Mas sem notas nem moedas, nem cifras nem cifrões. Guardei no bolso apenas a sabedoria. E quanto mais sabia, mais queria saber. E tocava, sentia, cheirava cada lugar como se lhe quisesse espremer o sumo, como se quisesse num abraço agarrar todo o mundo. Outra vez o medo. Tinha sempre medo de errar. O que é que os outros iriam pensar. Mas depois reagia. Amanhã já ninguém se irá lembrar. E a pensar sorria: não terão sequer fixado o meu nome. E o texto que me deliciei a cozinhar em lume brando, durante horas e horas, não será mais que a página rasgada, uma história assassinada a servir de agasalho a uma dúzia de castanhas quentes. Muitas vezes nem dormia, tal era a pressa de viver. Cada minuto em que fechasse os olhos seria menos um, numa acelerada contagem decrescente. Seria uma perda de tempo e eu não tinha tempo a perder. Mas o cansaço perseguia-me. Combatia-o ferozmente, consumindo cafeína a um ritmo vertiginoso, enquanto queimava teimosos cigarros que por castigo acabavam por morrer espezinhados. Fui feliz, posso dizer que fui muito feliz a fazer o que mais amava. Hoje recordo com saudade cada rosto, cada sorriso, cada lágrima impressa nas histórias que contei. Poderia ter feito melhor? Talvez, quem sabe. Ao olhar para trás, vejo estradas e mar e céu. Vejo pessoas e vidas que se perdem e se renovam a cada instante. Vejo decisões certas que traçaram rumos, escolhas erradas que serviram para ensinar alguém. Até ao dia em que os meus olhos contrariarem a minha vontade e se fecharem para sempre, vou devorar o mundo e tentar trocá-lo por miúdos para que todos os outros o fiquem a conhecer melhor. Até à última letra do alfabeto, vou continuar a gritar, até que as palavras se me esgotem de vez.

Comentários

Mensagens populares deste blogue

VERSÃO 4.5

Dizem-me frequentemente que ainda tenho cara de menina, que ainda sou nova, que ainda tenho a vida à minha frente. Contudo, face à cronologia, é-me inevitável constatar que mais de metade do tempo que me foi concedido já passou. O que me resta já será provavelmente menos. Se isso me inquieta? Não em termos de medo, mais em termos de pressa. Já não é pressa de viver mas de realizar, de me realizar. Apesar de já ter plantado árvores, tido filhos e publicado livros, sinto-me ainda distante da potencialidade plena do meu propósito existencial. O que me falta realizar então? Talvez plantar mais árvores e escrever mais livros, já que a possibilidade de gerar filhos tem prazo de validade e a energia vital para os cuidar vai esmorecendo. Tudo o que me falta fazer parece-me tanto para o tempo que imagino à minha frente. Não cabem tantos livros e filmes e viagens e experiências nas décadas que imagino ainda poder viver. O meu maior conflito interior neste momento é já não ser nova para tanta coi...

RECONFINAMENTO - III

Os dias passam velozes mas o tempo parece não avançar. As soluções demoram, ninguém trava a morte, o cárcere dos dias é uma asfixia doméstica sem direito a balões de oxigénio. Resta-nos fechar os olhos e apelar à imaginação: estar aonde não estamos, ir aonde não vamos. O pensamento pode ser o pior ou o nosso melhor aliado. As saudades têm nome e rosto e os beijos e abraços são promessas dolorosas por cumprir. Queremos todos o mesmo. O que mais desejamos é que este tempo passe e o mundo avance para outra realidade. Uma vida nova, sem distâncias de pele, na qual nos possamos voltar a cheirar e tocar ao sabor do desejo.

Quando a avó me levava ao parque

Quando a minha avó me levava ao parque, eu tinha cinco anos e ainda sabia ser feliz. A avó levava sempre a minha mão bem apertada pelo medo de não me deixar fugir. Esses dias eram sempre finais de tarde de verão, daqueles que o Sol gosta de prolongar até que resolve esconder-se. Depois de jantar, lá íamos nós, rua acima, pela fresquinha – como ela dizia – agradada com a brisa que antecede o anoitecer. Lá em casa, jantávamos cedo, às seis da tarde já a comida estava na mesa. Era assim por causa do avô. Ele chegava das obras com a roupa e as botas pesadas de cimento e tomava sempre banho antes de ocupar o seu lugar cativo à mesa. Depois, com as mãos espessas e ásperas de tanto acartar baldes de massa, cortava uma fatia de pão. Vida dura a do avô. As obras começavam sempre cedo, sobretudo no verão, para fugir à braseira estival. Vida dura a da avó. Uma vida feita de espera e de cuidar dos outros. Mas nem um lamento. Daquela boca só saíam jóias e rebuçados. Daquelas mãos, só carinho. Da...