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Desembrulhando memórias de Natal

A meio da tarde, já o cheiro do fogão a lenha inunda a casa. Orgulhosa dos novos sapatinhos de verniz, Sofia sobe os poiais da entrada a saltitar. Os primos correm para a receber. Passou mais um ano e estão todos tão crescidos… Trocam abraços e beijos e cheiros. Os primos de França emanam aromas que vêm do estrangeiro. Os cremes e perfumes que usam exalam fragrâncias que perduram na memória de Sofia até hoje. A menina atravessa o longo corredor a correr, raspando ao de leve as pontas dos dedos pela parede áspera pintada de rosa velho. Desemboca na sala, onde não se demora, subindo mais um degrau até à cozinha onde fervilham tachos no pequeno fogão. A avó bate claras em castelo, ultimando as farófias que vai servir logo à noite. Sempre a subir. Falta cumprimentar o avô, que como sempre está no quintal, envolto no seu mundo de redes e alcatruzes com cheiro a maresia. Sentado no banco de madeira pintado de azul, junto ao fogão a lenha, de boné de fazenda e bigode sempre negro (apesar do avançar da idade), dá-nos a cara para um beijinho e começa a falar. Mas Sofia apenas percebe palavras soltas nos intervalos entre uma e outra conversa. O avô fala uma língua difícil de entender. É uma mistura de algarvio atravessado com prosa de homem do mar. Mas é uma figura simpática o avô. Pouco afável é certo, mas sempre com um sorriso meigo para oferecer. Na cozinha, as mães, tias, filhas e cunhadas contam as novidades, entre facas e alguidares. Para alternar com os doces, preparam uma salada de frutas. Os homens ficaram lá fora a fumar, a passear o cão e a falar do trabalho. As crianças, estão agora enfiadas num dos quartos a fazer horas para o jantar. Um dos primos tem um aparelho portátil para ouvir CDs que deixa Sofia maravilhada. Coloca os auriculares nos ouvidos e o sorriso que lhe atravessa os olhos e os lábios denuncia um mergulho noutra dimensão. “Meninos, venham para a mesa!”. O grito interrompe as conversas e as brincadeiras e, num ápice, todos se reúnem à volta da mesa. Todos juntos parecem muitos. Avós, filhos e netos, três gerações, laços de sangue que irão durar muito mais que a amizade. Sofia estava muito longe de imaginar que aquele seria o Natal que mais tarde iria recordar com mais saudade. Um acontecimento efémero que não voltaria a repetir-se. Os laços de família quebraram-se algures no tempo. Hoje, os raros reencontros dão-se por ocasião de um próximo funeral. Num misto de alegria (pelo que viveu) e de tristeza (pelo que hoje sente), Sofia fecha os olhos e consegue ver-se ali pequenina, cristalizada naquele jantar de Natal, com toda a família reunida, agasalhada pelo calor humano e contagiada pelo ruído alegre de uma casa cheia de gente feliz. Afinal, o que é o Natal? O Natal é isto. O que nos sobra depois de tudo o resto.

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