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O meu fado é Lisboa

Querida Lisboa, escrevo para te contar que a menina que viste nascer já é uma mulher. Que distraída que andas, minha querida, quem nem a viste passar no outro dia. Sim, ela esteve aí. De visita rápida, daquelas que os médicos costumam fazer. Que disparate, isso era no tempo em que os senhores doutores se dignavam a ir a casa dos pacientes e os tratavam pelos nomes. Onde é que isso já lá vai… Voltando à conversa, sim, a menina já senhora passou por ti há dias. Chegou de comboio. Agora que já atravessa a ponte, é uma maravilha. Contou-me que a manhã estava fria, porém ensolarada. De óculos escuros, fez-se ao caminho, a pé como mais gosta. Parece que a estou a ver, sentindo-se livre como um passarinho que o dono libertou da gaiola. Cabelos ao vento, pescoço aconchegado pela sua inseparável écharpe. Ou seria antes um cachecol? Parece que ainda a oiço pisar o chão ao ritmo marcado pelo atrito das solas de couro nas pedras da calçada. Levava as suas botas altas, parecia uma cavaleira. E lá ia ela, parece mesmo que a estou a ver. A inspirar-te, querida Lisboa, poluída como tu só, de tanto tráfego. Nunca vi ninguém parecer tão feliz no meio de tanta confusão. Mas a tua menina, Lisboa, aquela que já é uma mulher, esboça um sorriso rasgado, assim que começa a avistar-te, ainda ao longe, ainda na outra margem. Ao levitar sobre o Tejo, seja de carro, barco, comboio ou avião, contou-me ela há dias, há um êxtase que a invade. O rio, o céu, o castelo que se ergue logo ali, a ponte que ajuda a compor a moldura, de um lado o Padrão, do outro o Panteão. Ela diz-me que chega a temer não ter olhos para tanto. Lisboa, ela diz que tens uma beleza hipnótica, impossível de resistir. Espero que as minhas simpáticas palavras te sirvam de consolo, agora que descobriste que o fado já não é só teu. É de toda a humanidade, vê lá tu bem. Não morras de ciúmes, por favor. (O que fazemos bem serve para todos, o que fazemos mal fica só para nós. Desabafos dos tempos que correm. E que não venham piores, é tudo o que peço). Bem, minha querida Lisboa, por hoje me despeço. Só quero que saibas que a tua menina, aquela que já é uma mulher, consome-se de saudades tuas e promete regressar em breve. Espero que para a próxima consigam trocar dois dedos de prosa.

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