Avançar para o conteúdo principal

Regresso a casa

Meto a chave à porta quase sem fôlego. Por mais anos que passem, não consigo habituar-me aos três lanços de escadas, pedra mármore, degrau sobre degrau. Ao entreabrir-se, a porta range, na sua linguagem própria dá-me as boas-vindas. Volta, estás perdoada, dir-me-ia se fosse gente. As solas das botas coçam o tapete, antes de darem um passo em frente. Pé direito no soalho flutuante, depois o esquerdo e, quando a porta se fecha atrás de mim num ruído estridente, encho o corredor de alegria com os meus toc-toc-toc. As paredes estão felizes por voltar a ser brancas, agora que a luz se reacende. Têm vivido na penumbra, desde que há um par de anos lhes disse adeus, vou partir. O espelho, defronte à porta, dourado, cheio de rococós, não engana: o tempo passa. No reflexo, vejo projecções da jovem que um dia irrompeu porta adentro com uma bagagem carregada de roupa, de livros e de sonhos. Foi há quinze anos. Na altura, as janelas eram todas de madeira, com vidros pelo meio. Os puxadores rodavam como aquelas máquinas que cospem amendoins quando engolem uma moeda. Recordo noites tempestuosas. O vento a uivar por debaixo das frestas semi-agasalhadas com toalhas velhas que de pouco serviam. A madeira era sacudida, agredida pela força da ventania. Os pingos grossos de chuva metralhavam as persianas. E eu não pregava olho. Tremia de frio e de medo, de cabeça escondida sob a velha manta com um cavalo estampado. A luz de cabeceira acesa intimidava-me com as suas intermitências. As trevas sempre à espreita. Desejava que o dia chegasse depressa. Que as horas pudessem correr um pouco mais velozes pela noite dentro. Recordava outras noites. Noites de casa cheia, quando as miúdas da faculdade aqui se reuniam. Elas libertavam-se do controle paternal e eu rejubilava pelo calor humano. Eram noites brancas onde quase não íamos à cama. Fazíamos quase directas por entre papeladas, cigarros e o chá das cinco da manhã, ao qual eu gostava de adicionar torradas. E riamos. Riamos muito. Eram gargalhadas a bandeiras despregadas. Por tudo e por nada. Éramos genuinamente felizes e nem nos dávamos conta. À alvorada, passávamos por debaixo do duche, antes de dar à sola. O comboio rumo à faculdade partia às sete em ponto. Antes de sairmos, espreitávamos o espelho, que nos confirmava o pior receio. “Credo, parece que tenho quinhentos anos” – exclamou, pálida, uma das meninas, numa dessas manhãs. Não nos contivemos. O riso saiu afinado em uníssono. Tínhamos de facto um mau aspecto porreiro. Mas nada que nos impedisse de começar alegremente mais um belo dia das nossas ainda tenras vidas.

Comentários

Mensagens populares deste blogue

VERSÃO 4.5

Dizem-me frequentemente que ainda tenho cara de menina, que ainda sou nova, que ainda tenho a vida à minha frente. Contudo, face à cronologia, é-me inevitável constatar que mais de metade do tempo que me foi concedido já passou. O que me resta já será provavelmente menos. Se isso me inquieta? Não em termos de medo, mais em termos de pressa. Já não é pressa de viver mas de realizar, de me realizar. Apesar de já ter plantado árvores, tido filhos e publicado livros, sinto-me ainda distante da potencialidade plena do meu propósito existencial. O que me falta realizar então? Talvez plantar mais árvores e escrever mais livros, já que a possibilidade de gerar filhos tem prazo de validade e a energia vital para os cuidar vai esmorecendo. Tudo o que me falta fazer parece-me tanto para o tempo que imagino à minha frente. Não cabem tantos livros e filmes e viagens e experiências nas décadas que imagino ainda poder viver. O meu maior conflito interior neste momento é já não ser nova para tanta coi...

RECONFINAMENTO - III

Os dias passam velozes mas o tempo parece não avançar. As soluções demoram, ninguém trava a morte, o cárcere dos dias é uma asfixia doméstica sem direito a balões de oxigénio. Resta-nos fechar os olhos e apelar à imaginação: estar aonde não estamos, ir aonde não vamos. O pensamento pode ser o pior ou o nosso melhor aliado. As saudades têm nome e rosto e os beijos e abraços são promessas dolorosas por cumprir. Queremos todos o mesmo. O que mais desejamos é que este tempo passe e o mundo avance para outra realidade. Uma vida nova, sem distâncias de pele, na qual nos possamos voltar a cheirar e tocar ao sabor do desejo.

Quando a avó me levava ao parque

Quando a minha avó me levava ao parque, eu tinha cinco anos e ainda sabia ser feliz. A avó levava sempre a minha mão bem apertada pelo medo de não me deixar fugir. Esses dias eram sempre finais de tarde de verão, daqueles que o Sol gosta de prolongar até que resolve esconder-se. Depois de jantar, lá íamos nós, rua acima, pela fresquinha – como ela dizia – agradada com a brisa que antecede o anoitecer. Lá em casa, jantávamos cedo, às seis da tarde já a comida estava na mesa. Era assim por causa do avô. Ele chegava das obras com a roupa e as botas pesadas de cimento e tomava sempre banho antes de ocupar o seu lugar cativo à mesa. Depois, com as mãos espessas e ásperas de tanto acartar baldes de massa, cortava uma fatia de pão. Vida dura a do avô. As obras começavam sempre cedo, sobretudo no verão, para fugir à braseira estival. Vida dura a da avó. Uma vida feita de espera e de cuidar dos outros. Mas nem um lamento. Daquela boca só saíam jóias e rebuçados. Daquelas mãos, só carinho. Da...