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Bela adormecida

Era uma noite de janelas abertas e muita falta de ar. Ela deambulava pela casa suspirante, sem rumo certo, ora pelo corredor, ora pelo quarto, ora pela sala, sem encontrar o poiso certo. Era como se lhe apetecesse algo que não tem nome, que não se entende, que não se pode explicar. Um lugar, um objecto, uma pessoa? Ou talvez nada. Ou talvez um pouco de tudo isso. Era como se tudo tivesse e ainda assim tudo lhe faltasse. Tinha talvez o essencial. Talvez lhe faltasse o acessório. Aquela, a tal, a peça fundamental para completar o puzzle tantas vezes imaginado em sonhos. Sonhos secretos. Ligou a TV. Percorreu todos os canais. E nada. Tentou a aparelhagem. Na rádio não conseguiu sintonizar-se com qualquer melodia. Pegou num livro. Folheou. Cheirou o rasto do restolhar das páginas. Desistiu antes de começar. Esquecia-se da segunda palavra antes de fixar os olhos na terceira. Toda a sua atenção estava desfocada por ideias desalinhadas que se entrecruzavam aleatoriamente. Na cabeça, milhares de pensamentos soltos sem rédea saltavam desarrumadas como papéis antigos que transbordam de gavetas escancaradas. A noite é boa conselheira. Decidiu por isso passear-se pela varanda de pele desnudada. Sob o olhar atento da Lua deixou-se contemplar à luz da noite escura pelos olhos perdidos de ninguém. Talvez ao longe, lá muito longe, alguém a espreitasse com um olhar parado e silencioso enfiado nuns binóculos. Um ponto no centro do universo, foi assim que subitamente se sentiu. Foi assim que se reencontrou. Inspirou a plenos pulmões o ar quente e denso da noite longa de Agosto, bocejou e percebeu que na verdade nada no mundo lhe fazia mais falta que uma bela noite de sono.

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