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Noventa dias felizes

Volto à superfície com a urgência de uma golfada de ar. A minha cabeça irrompe da água numa aflição. Liberto a respiração, abrindo a boca e os olhos. Num gesto mecânico, passo as duas mãos pelos cabelos molhados, como se os pudesse pentear. Viro-me para terra e tudo o que vejo são restos de mais um Verão que passou: gente e mais gente, uma mancha de toalhas de todas as cores, chapéus e chapéus-de-sol que inundam um areal a perder de vista. O mesmo areal que daqui a dias não será mais que um deserto. Os grãos de areia vão sentir falta de tudo isto: dos corpos jovens, verdes, viçosos, como tenros rebentos, firmes troncos; dos corpos mais velhos, maduros, cheios de polpa, gelatinosos, desmazelados mas confiantes; dos idosos que, antes das nove, como se o mar fosse um patrão, como se o areal os aguardasse com a hora marcada de um emprego, já assentaram arraiais; das peles quentes, ardentes, suadas, salgadas, temperadas, implorando um beijo doce; saudades do aroma a creme de coco que se espalha pelo corpo e depois pelo ar, levado pelo vento suão; saudades do som metálico do desembrulhar das sandes que cheiram a manteiga e chourição; saudades da boca que fala cheia de pão e manteiga e chourição, conversas soltas, assuntos leves, histórias de Verão. Estou certa que os grãos de areia vão morrer de saudades das gargalhadas libertadas em inglês, francês e espanhol, que se cruzam e acabam por se entender numa linguagem universal; vão morrer de saudades dos gritinhos infantis que rebentam como ondas gigantes nos ouvidos de quem procura o silêncio nas páginas de um livro; saudades do estalido seco da bola, ora aqui, ora ali, agora nesta, depois na outra raquete; saudades do homem das bolinhas de Berlim e do seu célebre pregão; das avionetas que voam baixinho embandeirando faixas brancas que anunciam feiras e festas e concertos e muita animação; saudades dos pardais que saltitam de grão em grão, em busca de migalhas perdidas. Saudade, saudade, saudade, é tudo o que os grãos de areia vão sentir daqui em diante. Vão recordar que Junho passou apressado sem que ninguém se desse conta: abriu as portas, deixou o Verão entrar e foi-se embora dizendo “agora, só para o ano”. Vão lembrar-se mais de Julho que entrou deixando-se ficar; mais vaidoso, gosta de ser apreciado: abriu as hostes por entre os silêncios e sussurrou-lhes ao ouvido “é tempo de fruir”. Em Agosto, os grãos de areia já sabem: é quando tudo acontece. E depressa tudo acaba; numa rima inevitável, confirmam: é o mês do desgosto. Discreta e lentamente, a contra-gosto, fecham-se os chapéus-de-sol, secam-se os corpos e arrumam-se as toalhas. Para trás, milhares de pegadas na areia que aos poucos o mar vai apagar. Mas a memória dos grãos de areia, não vai com as ondas, permanece intacta. Se eu fosse um grão de areia, também morreria de saudades do Verão, ainda que morresse feliz: haverá melhor sítio para se morrer do que na praia?

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Reportagem # 32

Jornal "Dica da Semana", edição regional Algarve, 29 de Janeiro de 2015

FRIDAY EATS

A refeição que pedala a rua à minha frente vai saciar o cansaço de alguém que trocou horas de fome por uns tostões. A energia que sobra é a da ponta dos dedos. Três toques no ecrã e o jantar está pronto. A marmita verde atravessa a cidade, pela força estoica do homem que não fala português. Também não precisa. Basta tocar à campainha e dizer a palavra mágica de significado universal. Num silêncio solene, digno de um requintado mordomo, abre o saco térmico e serve o jantar. O pobre senhor que ganha uns tostões, hoje sente-se um rei. Espreguiçado no sofá, a lambuzar-se num menu cancerígeno qualquer, reencontra um espasmo de felicidade. Ah, como é boa a sexta-feira! Mham 

PERTENÇA VIRTUAL

Apaixonaram-se ao primeiro clique.  No início, tudo tinha a leveza eufórica da novidade. Tudo tinha o ingénuo encanto do desconhecido. Enquanto deslindavam os detalhes virtuosos da vida privada um do outro, em mensagens infinitas, contemplavam-se teclando, trocando imagens e palavras e emojis. Foram dias áureos de expectativa crescente. Quando será o nosso encontro real? A magia começava a desvanecer-se ao surgir a questão. Alguém não deseja abdicar do perfeccionismo platónico. Camuflados na virtualidade somos todos muito bons. Para quê sair do casulo para dar a conhecer o pior de nós? O melhor é encerrar o assunto enquanto ainda paira a beleza inicial. Um vai-se esfumando e saí de mansinho. As respostas chegam cada vez mais demoradas até não chegarem mais. Encontros românticos são para gente corajosa na vida real. O que aconteceu aqui foi só uma ilusão. A ludibriosa crença de ser possível uma pertença virtual.  (Publicado na revista ESPÚRIA, outubro 2023)