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O dia em que nasci


Maternidade Alfredo da Costa (MAC), Lisboa, 29 de Setembro de 1979
O mundo atravessa o ano de 1979, os calendários permanecem suspensos no mês de Setembro, enquanto a minha mãe percorre os corredores da maternidade, ainda sem saber se será menino ou menina. Já passa do tempo e eu pareço teimar em não querer nascer. Por isso, naquele dia, sou obrigada a fazê-lo à força. Naquela tarde de finais de Setembro, é uma parteira amiga da minha mãe que a conduz a Lisboa. Ainda em casa, dá-lhe uma injecção para induzir o parto, antes de a levar para o carro onde põe a tocar uma cassete de fados. É o choro das guitarras que há-de embalar a dor das primeiras contracções. Ao passar a ponte, ao cruzar o Tejo, enquanto acaricia a enorme barriga como se fosse já um bebé, a minha mãe tem mil sonhos para mim. Todos os seus pensamentos são bons. Todos os seus sonhos são possíveis. Naquele instante de infinito, ela carrega no ventre uma explosão de energia prestes a acontecer. Uma nova pessoa, uma nova vida, como um novo universo pronto a eclodir. É sexta-feira, a última do mês de Setembro e o Outono leva de mansinho os últimos vestígios de Verão. Aos poucos, o Sol esmorece num céu muito azul salpicado de nuvens brancas. O meu pai está longe e é a minha avó que o chama, fazendo girar o dedo indicador por entre os números do velhinho telefone preto que está sobre a sapateira no hall de entrada: "Ela já foi para a maternidade". A frase atravessa quilómetros através da linha telefónica e chega ao ouvido do meu pai num tom de urgência, como um grito de aflição. Do outro lado, o meu pai é um homem nervoso, ainda de cabelo muito negro, ainda com cara de menino. Aos vinte e cinco anos vai ser pai pela primeira vez. E por mais que deseje aquele momento é impossível conter a ansiedade. A partir de agora é que vou ser um homem, pensa enquanto caminha apressado rumo à estação dos comboios. Na maternidade, a minha mãe aguarda. Espera pelas dores, espera pelo meu pai e espera ver-me pela primeira vez. Cada minuto parece conter todos os nove meses. Não se adivinha um parto fácil e acabo por ser sugada do interior da minha mãe por uma ventosa. Desperto para a vida já na madrugada de Sábado, 29 de Setembro. Não vejo a luz do dia porque ainda é noite escura. À uma e trinta e cinco da manhã a minha mãe está exausta e eu choro porque ainda não sei falar, porque ainda não aprendi a dizer: "Estou aqui mãe, já cheguei, estás feliz"? O seu sorriso lavado em lágrimas tem todas as respostas do mundo. Sim, ela está feliz porque acaba de realizar o sonho de uma vida. Agora já pode dizer: Sou mãe. A viagem nocturna do meu pai é feita de trezentos quilómetros de insónia. Solavanco após solavanco, pouca terra, pouca terra, mil pensamentos atravessam o seu olhar, ora de olhos fechados, ora de olhar fixo na paisagem de noite escura feita de sombras e raios de luz intermitentes. “É uma menina!”, anuncia a minha avó feliz à sua chegada. Dentro de um silêncio de olhar vidrado, o meu pai é finalmente um homem, um homem feliz. Manhã de Sábado, dia de Sol, Lisboa parece uma cidade coberta por um manto de felicidade. Os olhos escuros do meu pai reflectem e espalham alegria por toda a parte. Os mesmos olhos procuram uma loja de roupa para bebé. Os mesmos olhos encontram-na. É de uma pequena loja de uma grande avenida da capital que sai o meu primeiro vestido de menina, dentro de um saco que o meu pai transporta feliz. O vestido é branco, feito de malha à moda antiga, e tem riscas cor-de-rosa na zona do peito. O meu primeiro vestido tem também uma touca a condizer. O meu pai caminha na direcção da maternidade, com o saco na mão e comigo no pensamento. Antes de entrar, tira uma fotografia ao edifício. Quer eternizar o momento, expandir os horizontes da memória, contar a história do dia em que nasci. Estou deitada ao lado da minha mãe numa cama de ferro desgastada pelo tempo e pelo choro de milhares de bebés que por ali passaram antes de mim. Dizem que sou um bebé muito perfeitinho, de carinha muito redonda e muito rosadinha. O meu pai entra no quarto, beija a minha mãe e pousa os olhos em mim pela primeira vez como uma carícia.
O meu pai  e eu
Nesse preciso instante, dentro do quarto, eu sou o vértice de um harmonioso triângulo invisível que nos transforma de repente num só: agora somos uma família. Lá fora, o mundo não pára. A minha avó, mãe da minha mãe, secretamente deseja mas ainda não sabe que iremos ser muito amigas. O meu avô, que tem pavor de hospitais, está desapontado por eu não ser um rapaz e afoga os nervos com os amigos num café, enquanto espera ver-me em casa. O meu irmão ainda não existe e ninguém suspeita sequer que virá juntar-se a nós daqui a dois anos. Ninguém imagina que irá chamar-se Miguel, nome do santo padroeiro do dia em que nasci. Lá fora, o mundo não pára. Corre o ano de 1979 e Portugal é governado por uma mulher, a primeira e única até hoje: Maria de Lurdes Pintassilgo. Francisco Sá Carneiro já tem vontade, mas ainda não tem a certeza que será o senhor que se segue. Na televisão, o Papa João Paulo II ainda parece jovem e acena ao mundo dentro das suas vestes brancas. A madre Teresa de Calcutá, ainda é viva e receberá dentro de dias o prémio Nobel da Paz. E eu acabo de nascer e sou registada. Transformo-me numa pessoa. Cláudia Sofia é o meu nome. É o nome que nome que os meus pais em conjunto escolheram para mim, em homenagem a duas beldades italianas da época: Cláudia Cardinale e Sophia Loren. Espero estar à altura de tamanho tributo. Hoje, trinta e três anos depois, continuam ambas a ser muito belas. Hoje, como nunca antes, entendo o significado do passar dos anos: envelhecer é apenas saber apreciar cada vez melhor o tempo presente. Hoje, nesta data querida, em que as pessoas que me viram nascer ainda estão vivas e vão cantar-me os parabéns a você, dedico estas palavras a todas elas em geral e a uma em particular: Mãe, obrigada por me teres dado a vida.

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