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Utopia

Há uma definição que ouvi há dias que não me sai da cabeça. Alguém terá dito que a utopia é como um horizonte: damos dez passos e ela afasta-se, damos mais dez, tentando aproximarmo-nos, e ela volta a afastar-se. É como um jogo do “toca e foge”, que nunca terá fim. Tal como o horizonte, a utopia é uma linha imaginária que conseguimos visualizar mas jamais poderemos tocar. Funciona porém como a cenoura atrás da qual o burro corre. A cenoura é uma qualquer utopia. O burro somos nós. Se bem que na história do burro, se o animal for persistente que baste, poderá a dada altura alcançar a cenoura e trincá-la a seu bel-prazer, celebrando vitória pela conquista do objecto desejado. Na vida dos seres humanos, aquela que se conveio designar por vida em sociedade, podem existir tantas utopias quantas mentes haja ávidas de sonhar. Se o sonho comanda a vida, como dizia o poeta, a utopia comanda a vontade de acreditar que todos os sonhos podem tornar-se realidade, mesmo que na verdade não possam. Muitos ficam no limbo. A realidade sonhada é perfeita, dá gosto pensar nela. Respiramos fundo e por instantes temos a sensação que tudo é possivelmente maravilhoso, que nada ficará desarrumado, que todas as peças encaixarão no puzzle, completando um desenho que no final será uma obra de arte. Gosto de utopias. Gosto de acreditar que um dia as utopias vão deixar de ser utopias para se tornarem realidades possíveis. Gosto de construir utopias, sonhar com elas e persegui-las a passos largos, ainda que teimem em afastar-se, dez passos e mais dez passos e mais dez passos. Hoje, amanhã e sempre, tudo farei para preservar a minha natureza utópica, a principal alavanca de tudo o que faço e sou. Manterei sempre um punho cerrado disposto a cair sobre a mesa. Nunca hei-de arrumar as botas, baixar os braços ou enterrar a cabeça na areia. Quem desiste sem tentar, será esquecido. Quem vai à luta, mesmo que não vença, será lembrado. A minha boca continuará a abrir-se de espanto, pasmada com a força que magicamente me renasce das veias quando já a sabia esgotada. Sempre que algo ou alguém me empurrar ao chão, haverá uma garra de leão, um fúria de viver que nascerá do desejo de manter-me de pé e de assim permanecer, até morrer, assim de pé, como só as árvores podem.

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