Avançar para o conteúdo principal

Felizes para sempre

No interior da pequena capela, que mais parece uma gruta encostada ao mar, não se vislumbra qualquer ornamento de luxo. Nem flores, nem laços, nem quaisquer outros adornos desnecessários. As paredes são feitas de beleza pura desgastada pelo tempo, como uma mulher bonita que envelhece só amadurecendo os traços.
Dentro de um fato negro, um noivo pálido não consegue esconder o nervoso miudinho da espera. Os pés dão passos miudinhos sobre os ténis vermelhos que destoam da fatiota. O noivo miudinho exibe um coração miudinho cheio de amor ao peito. O toque de originalidade cobre também o menino que está sentado no banco da frente. De fatinho e ténis e coração ao peito, aguarda com o mesmo nervoso miudinho a chegada da mãe, que hoje será a noiva. Os pescoços torcem-se em uníssono. A mulher de vestido branco chega como uma luz, como um sol que subitamente se destapa das nuvens. A menina de dentes miudinhos tem a cara feita num sorriso. De braço enfiado no cotovelo do pai, aproxima-se num passo regular erguendo um ramo de corações vermelhos que desejam encontrar o noivo de amor ao peito. Deparam-se e beijam-se antes como se já fosse depois. Um padre surpreendente quebra um quase silêncio de segredos baixinhos num sotaque latino-americano. Atrás dos noivos, uma pequena multidão de convidados de cabelos e trajes alinhados surpreende-se. As palavras obrigatórias vão atravessando ouvidos desatentos, detendo-se num ou noutro pormenor. “Deus não condena o sexo, desde que dentro do matrimónio”. O padre falou em sexo?, interroga-se a audiência, agora de orelhas empinadas. O discurso passeia-se pela capela e pousa nas mãos unidas, nas juras trocadas, nas alianças enfiadas, no beijo, depois, ainda mais forte do que antes.
A menina dos dentes miudinhos e sorriso grande e o rapaz miudinho do coração grande são agora marido e mulher. “Até que a morte os separe”, assegura o padre, abençoando todos os presentes.
O sonho acabou. A realidade começa agora.
Os noivos saem juntos, correm, atravessam um corredor de gente e fogem da chuva de arroz. A tradição mantém-se. Continua a ser bonito assistir à celebração do amor.




Comentários

Enviar um comentário

Se gostou deste artigo, ou tem uma palavra a acrescentar, agradeço imenso que deixe o seu comentário.

Mensagens populares deste blogue

VERSÃO 4.5

Dizem-me frequentemente que ainda tenho cara de menina, que ainda sou nova, que ainda tenho a vida à minha frente. Contudo, face à cronologia, é-me inevitável constatar que mais de metade do tempo que me foi concedido já passou. O que me resta já será provavelmente menos. Se isso me inquieta? Não em termos de medo, mais em termos de pressa. Já não é pressa de viver mas de realizar, de me realizar. Apesar de já ter plantado árvores, tido filhos e publicado livros, sinto-me ainda distante da potencialidade plena do meu propósito existencial. O que me falta realizar então? Talvez plantar mais árvores e escrever mais livros, já que a possibilidade de gerar filhos tem prazo de validade e a energia vital para os cuidar vai esmorecendo. Tudo o que me falta fazer parece-me tanto para o tempo que imagino à minha frente. Não cabem tantos livros e filmes e viagens e experiências nas décadas que imagino ainda poder viver. O meu maior conflito interior neste momento é já não ser nova para tanta coi...

RECONFINAMENTO - III

Os dias passam velozes mas o tempo parece não avançar. As soluções demoram, ninguém trava a morte, o cárcere dos dias é uma asfixia doméstica sem direito a balões de oxigénio. Resta-nos fechar os olhos e apelar à imaginação: estar aonde não estamos, ir aonde não vamos. O pensamento pode ser o pior ou o nosso melhor aliado. As saudades têm nome e rosto e os beijos e abraços são promessas dolorosas por cumprir. Queremos todos o mesmo. O que mais desejamos é que este tempo passe e o mundo avance para outra realidade. Uma vida nova, sem distâncias de pele, na qual nos possamos voltar a cheirar e tocar ao sabor do desejo.

Quando a avó me levava ao parque

Quando a minha avó me levava ao parque, eu tinha cinco anos e ainda sabia ser feliz. A avó levava sempre a minha mão bem apertada pelo medo de não me deixar fugir. Esses dias eram sempre finais de tarde de verão, daqueles que o Sol gosta de prolongar até que resolve esconder-se. Depois de jantar, lá íamos nós, rua acima, pela fresquinha – como ela dizia – agradada com a brisa que antecede o anoitecer. Lá em casa, jantávamos cedo, às seis da tarde já a comida estava na mesa. Era assim por causa do avô. Ele chegava das obras com a roupa e as botas pesadas de cimento e tomava sempre banho antes de ocupar o seu lugar cativo à mesa. Depois, com as mãos espessas e ásperas de tanto acartar baldes de massa, cortava uma fatia de pão. Vida dura a do avô. As obras começavam sempre cedo, sobretudo no verão, para fugir à braseira estival. Vida dura a da avó. Uma vida feita de espera e de cuidar dos outros. Mas nem um lamento. Daquela boca só saíam jóias e rebuçados. Daquelas mãos, só carinho. Da...