Avançar para o conteúdo principal

Os Maias

"Os Maias", João Botelho, 2014, 135 minutos
Que não vá ver “Os Maias” de João Botelho quem não tenha lido o romance de Eça de Queirós ou procure mero entretenimento. O filme mais visto nas salas de cinema portuguesas em 2014 está longe de ser um produto massificado de consumo fácil e rápido. É preciso ser-se capaz de compreender a essência do cinema para gostar-se desta adaptação cinematográfica. Um começo a preto e branco faz-nos recuar no tempo aos primórdios da sétima arte. Depois, a complexidade e a entoação teatral do texto só poderá ser apreciada pelo espectador mais sensível ao lirismo que caracteriza a obra de Eça de Queirós. Outra surpresa são os cenários. Feitos de enormes telões artisticamente pintados ilustram na perfeição cada local de passagem, numa alusão lírica, como se cada cena fosse um acto de ópera. A destacar, a beleza dos protagonistas. Graciano Dias é um Carlos da Maia capaz de encantar qualquer Maria Eduarda deste mundo e Maria Flor parece, toda ela, revestir-se de doçura com o seu sotaque brasileiro. O amor incestuoso entre os dois irmãos é uma cena da vida romântica que se consuma apesar da impossibilidade. Talvez a maior mensagem da obra “Os Maias” seja a revelação de um Portugal que pouco ou nada evoluiu em 125 anos. Para mim, narrativas como esta, onde histórias de amor desalinhadas marcam destinos, levantam-me a questão: que enredos haveria por desvelar, se todas as vidas seguissem o caminho das linhas rectas, das escolhas certas, da rejeição imediata das decisões mal calculadas? Palmas a João Botelho pela coragem da realização ambiciosa, sem recursos luxuosos. Parabéns a Pedro Inês, o actor cujo papel secundário acaba por parecer principal no seu brilhante desempenho como o fiel amigo João da Ega.

Sinopse, trailer, actores e muito mais, aqui: http://www.ardefilmes.org/osmaias/

Comentários

Mensagens populares deste blogue

VERSÃO 4.5

Dizem-me frequentemente que ainda tenho cara de menina, que ainda sou nova, que ainda tenho a vida à minha frente. Contudo, face à cronologia, é-me inevitável constatar que mais de metade do tempo que me foi concedido já passou. O que me resta já será provavelmente menos. Se isso me inquieta? Não em termos de medo, mais em termos de pressa. Já não é pressa de viver mas de realizar, de me realizar. Apesar de já ter plantado árvores, tido filhos e publicado livros, sinto-me ainda distante da potencialidade plena do meu propósito existencial. O que me falta realizar então? Talvez plantar mais árvores e escrever mais livros, já que a possibilidade de gerar filhos tem prazo de validade e a energia vital para os cuidar vai esmorecendo. Tudo o que me falta fazer parece-me tanto para o tempo que imagino à minha frente. Não cabem tantos livros e filmes e viagens e experiências nas décadas que imagino ainda poder viver. O meu maior conflito interior neste momento é já não ser nova para tanta coi...

RECONFINAMENTO - III

Os dias passam velozes mas o tempo parece não avançar. As soluções demoram, ninguém trava a morte, o cárcere dos dias é uma asfixia doméstica sem direito a balões de oxigénio. Resta-nos fechar os olhos e apelar à imaginação: estar aonde não estamos, ir aonde não vamos. O pensamento pode ser o pior ou o nosso melhor aliado. As saudades têm nome e rosto e os beijos e abraços são promessas dolorosas por cumprir. Queremos todos o mesmo. O que mais desejamos é que este tempo passe e o mundo avance para outra realidade. Uma vida nova, sem distâncias de pele, na qual nos possamos voltar a cheirar e tocar ao sabor do desejo.

Quando a avó me levava ao parque

Quando a minha avó me levava ao parque, eu tinha cinco anos e ainda sabia ser feliz. A avó levava sempre a minha mão bem apertada pelo medo de não me deixar fugir. Esses dias eram sempre finais de tarde de verão, daqueles que o Sol gosta de prolongar até que resolve esconder-se. Depois de jantar, lá íamos nós, rua acima, pela fresquinha – como ela dizia – agradada com a brisa que antecede o anoitecer. Lá em casa, jantávamos cedo, às seis da tarde já a comida estava na mesa. Era assim por causa do avô. Ele chegava das obras com a roupa e as botas pesadas de cimento e tomava sempre banho antes de ocupar o seu lugar cativo à mesa. Depois, com as mãos espessas e ásperas de tanto acartar baldes de massa, cortava uma fatia de pão. Vida dura a do avô. As obras começavam sempre cedo, sobretudo no verão, para fugir à braseira estival. Vida dura a da avó. Uma vida feita de espera e de cuidar dos outros. Mas nem um lamento. Daquela boca só saíam jóias e rebuçados. Daquelas mãos, só carinho. Da...