Os pombos já não voam sobre o telhado
e o teu olhar já não se detém inerte na sonolência das tardes a contemplá-los. Em
pose fúnebre, de olhos cerrados e mãos entrelaçadas sobre o peito, já não te
encontramos adormecido na sombra espreguiçada do quintal. A sala envelhecida na
escuridão dos móveis está agora deserta e o silêncio doméstico ecoa saudade. O
teu lugar cativo na poltrona está livre e a televisão desligada já não relata o
entusiasmo dos golos que, de boné orgulhosamente verde, aclamavas ou contestavas
de palavrão destravado na ponta da língua. A tua canina fiel companheira já não
adormece vigilante a teus pés, na certeza de um afagado despertar, nem te
interrompe as noites com necessidades inoportunas. As espingardas já não
disparam vitórias nem a alegria do passar dos anos no céu campestre. Permanecem,
na salinha da desarrumação, descarregadas e hirtas, a aguardar destino, por
entre pósteres, troféus e outras relíquias desportivas. A bicicleta de estrada
já não pedala, suspensa no armazém das velharias, a repousar de tantos anos de alcatrão
rolados. Ferramentas e ferramentas, enxadas e pás, enferrujam no desuso das
mãos de pedreiro-agricultor sem serventia. Oitenta e oito primaveras e tantas
sobras de vida a cada recanto por ensacar. No quarto dos fundos, a cama
articulada, a recordar diariamente à viúva o pôr-do-sol em que o lume da tua
existência se apagou. Sem um gemido, o coração de leão, tão resistente aos excessos
terrenos, entregou-se num suspiro à paragem do tempo. Agora repousas em paz, num baú de cerejeira
crucificado, à tua medida, arquivado numa gaveta de betão elevada ao céu. E a
tua fotografia emoldurada em mármore sorri tanto, sempre que alguém te visita
com uma flor.
À memória do meu avô Jaime
2.12.1931 - 15.06.2020
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