Avançar para o conteúdo principal

Um pão chamado bolo

Mal acabo de me sentar à mesa para aquela que seria a minha primeira refeição na Ilha da Madeira, sou violentamente confrontada com um cesto de pão. Uma massa quente, estaladiça por fora (meio esturricada até) e fofa por dentro, emana um salivante aroma. “ É o famoso bolo do caco” – apressa-se a esclarecer o empregado de mesa, com o visível orgulho de quem introduz um ex-líbris da região a toda a gente com aspecto de turista. “Com manteiga de alho é muito bom”, acrescenta, com o seu sotaque tipicamente madeirense, enquanto aponta discretamente para uma manteigueira de loiça que se destaca sobre a mesa. Descobrirei mais tarde, após experimentar mais de uma dezena de bolos do caco, todos em sítios diferentes, que este primeiro seria o meu preferido, exactamente por não vir recheado do que quer que fosse. Serei louca por toda a minha vida ter adorado comer pão às secas? Juro que adoro, não me perguntem porquê. Chego a ficar com soluços, por empurrar com insistência, movida apenas por saliva e gula, pequenas bolas de massa que vou espalmando entre o polegar e o indicador.
Mas porquê é que chamam a isto bolo do caco, se a mim apenas me parece uma espécie de pão de Mafra, um tanto ou quanto mais espalmado? Se ao menos fosse doce, ainda se entenderia a designação de bolo. Mas não, a massa é salgada, apenas confeccionada com farinha de trigo à qual são adicionados fermento, água e sal (descubro após uma breve consulta no ciberespaço). E é graças à mega enciclopédia online que desvendo a resposta à minha inquietação. Ou, pelo menos, parte dela. O caco deriva do facto desta massa ser tradicionalmente cozida sobre uma pedra de basalto, ou mais remotamente, sobre um caco de telha a escaldar. Ainda assim, continuo sem saber o porquê de ser bolo e não pão. Alguém me conseguirá esclarecer porque não chamam a esta deliciosa iguaria apenas pão do caco?
Ainda a debater-me com esta dúvida, embarco numa verdadeira viagem ao mundo dos sentidos, enquanto descubro os prazeres da gastronomia madeirense. Experimento o filete de espada com banana, que não se compara a nada que possa ter saboreado até hoje. Delicio-me com os cubos de milho frito que adornam a típica espetada de carne, após repetir dia após dia, sem me cansar, o mesmo aperitivo: as lapas grelhadas na chapa, salpicadas de alho picado e posteriormente regadas com limão. Quando não como lapas, opto por uma aveludada sopa de tomate com ovo escalfado. Sobra-me pouco estômago para os doces. Ainda assim, provo uma colherada aqui e outra ali. Entre o pudim de maracujá e a cassata de amêndoa com molho de chocolate quente, a escolha é de perder de vista.
Basta inverter o ditado e ter afinal mais barriga que olhos, onde possam caber tantas bombas calóricas. Agora percebo bem porque é que sobretudo as mulheres madeirenses são tão roliças. Diria mesmo que é muita força de banana e bolo do caco.
A rematar, o incontornável vinho da Madeira. Incontestavelmente famoso, existe em quatro variedades, respectivamente designadas pelas castas predominantes: Malvasia (doce), Boal (meio-doce), Verdelho (meio-seco) e Cercial (seco). Na adega Old Blandy, no coração do Funchal, enchem-se e vazam-se os cálices, ao ritmo da sede dos turistas que por aqui passam. Nunca em nenhum outro canto do mundo, senti os cinco sentidos tão apurados, tão em harmonia. Do olfacto ao paladar, o tacto revela texturas que a vista não alcança e o vento ouve-se assobiar quando o Sol se esconde timidamente por entre o manto de nuvens que abraçam a ilha, como se num casulo a quisessem proteger.

Comentários

Mensagens populares deste blogue

VERSÃO 4.5

Dizem-me frequentemente que ainda tenho cara de menina, que ainda sou nova, que ainda tenho a vida à minha frente. Contudo, face à cronologia, é-me inevitável constatar que mais de metade do tempo que me foi concedido já passou. O que me resta já será provavelmente menos. Se isso me inquieta? Não em termos de medo, mais em termos de pressa. Já não é pressa de viver mas de realizar, de me realizar. Apesar de já ter plantado árvores, tido filhos e publicado livros, sinto-me ainda distante da potencialidade plena do meu propósito existencial. O que me falta realizar então? Talvez plantar mais árvores e escrever mais livros, já que a possibilidade de gerar filhos tem prazo de validade e a energia vital para os cuidar vai esmorecendo. Tudo o que me falta fazer parece-me tanto para o tempo que imagino à minha frente. Não cabem tantos livros e filmes e viagens e experiências nas décadas que imagino ainda poder viver. O meu maior conflito interior neste momento é já não ser nova para tanta coi...

RECONFINAMENTO - III

Os dias passam velozes mas o tempo parece não avançar. As soluções demoram, ninguém trava a morte, o cárcere dos dias é uma asfixia doméstica sem direito a balões de oxigénio. Resta-nos fechar os olhos e apelar à imaginação: estar aonde não estamos, ir aonde não vamos. O pensamento pode ser o pior ou o nosso melhor aliado. As saudades têm nome e rosto e os beijos e abraços são promessas dolorosas por cumprir. Queremos todos o mesmo. O que mais desejamos é que este tempo passe e o mundo avance para outra realidade. Uma vida nova, sem distâncias de pele, na qual nos possamos voltar a cheirar e tocar ao sabor do desejo.

Quando a avó me levava ao parque

Quando a minha avó me levava ao parque, eu tinha cinco anos e ainda sabia ser feliz. A avó levava sempre a minha mão bem apertada pelo medo de não me deixar fugir. Esses dias eram sempre finais de tarde de verão, daqueles que o Sol gosta de prolongar até que resolve esconder-se. Depois de jantar, lá íamos nós, rua acima, pela fresquinha – como ela dizia – agradada com a brisa que antecede o anoitecer. Lá em casa, jantávamos cedo, às seis da tarde já a comida estava na mesa. Era assim por causa do avô. Ele chegava das obras com a roupa e as botas pesadas de cimento e tomava sempre banho antes de ocupar o seu lugar cativo à mesa. Depois, com as mãos espessas e ásperas de tanto acartar baldes de massa, cortava uma fatia de pão. Vida dura a do avô. As obras começavam sempre cedo, sobretudo no verão, para fugir à braseira estival. Vida dura a da avó. Uma vida feita de espera e de cuidar dos outros. Mas nem um lamento. Daquela boca só saíam jóias e rebuçados. Daquelas mãos, só carinho. Da...