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Conto "Casa de Bonecas" - página 8

Se calhar atrasou-se, foi o seu primeiro pensamento. Poucos segundos depois chegou Pedro cabisbaixo, ao volante do seu automóvel. Parou o carro e convidou-a a entrar:
- Entra Maria, precisamos de conversar – anunciou, com uma voz trémula.
- E a Dona Carlota, porque é que ela não me veio buscar hoje? – Questionou a menina, longe de adivinhar qual seria a terrível resposta.
Pedro ficou em silêncio mais alguns segundos. Ainda não sabia bem como dar a notícia. Esperava encontrar algures no seu pensamento as palavras mais correctas para falar de morte com uma criança.
- A avó… ficou doente esta noite – avançou Pedro.
- Doente? – Interrogou Maria. – Mas doente com quê? – Quis saber a menina, forçando Pedro a rapidamente inventar o cenário menos doloroso possível:
- A avó sentiu-se mal e tivemos que chamar o doutor. Ele veio, deu-lhe um remédio e a avó ficou a dormir… - Pedro fez nova pausa, agora com os olhos rasos de água. As evidências faziam Maria começar a aperceber-se de que deveria ter acontecido algo de muito grave com a sua velha amiga.
- Mas conta Pedro, conta, onde é que está a Dona Carlota agora? – Voltou a insistir a criança, já num estado de nervosismo crescente.
Pedro fechou os olhos e respirou fundo. E por fim esclareceu:
- Maria, a avó está no céu junto aos anjinhos. Ela estava muito cansada e eles vieram buscá-la para depois a levarem para um jardim muito bonito.
Pedro nem queria acreditar no que tinha acabado de dizer. As palavras iam-lhe saindo de forma espontânea e soavam-lhe estupidamente. Sentia-se um autêntico padre, a ler um excerto de um típico sermão dominical.
- A avó Carlota morreu? – Perguntou Maria, já com as lágrimas a caírem-lhe de fio.
- Sim, Maria. É muito difícil, eu sei, também estou muito triste, mas infelizmente foi isso que aconteceu.

Passaram-se vários meses até que Maria conseguisse pensar em Dona Carlota sem chorar. Estava tudo ainda tão presente. A sua voz, as palavras que lhe dissera no dia anterior à sua partida, o seu acenar junto ao portão da escola. Aquela amizade era a melhor coisa que lhe tinha acontecido desde que se lembrava de ser gente. E logo tinha que acabar tão depressa, pensava inconsolável.

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