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Conto "Casa de Bonecas" - página 9

Na ausência de Dona Carlota, Pedro fez cumprir os desejos da avó e encarregou-se ele próprio de garantir que nada de essencial iria faltar a Maria. Assegurava-lhe a compra de todos os materiais escolares, inscreveu-a num centro de ocupação de tempos livres, garantindo um lugar onde poderia cumprir os deveres com o acompanhamento de que não dispunha em casa, e definiu um dia da semana para ir buscá-la à escola. Todas as quartas-feiras, estacionava o carro junto ao portão e esperava que Maria chegasse. Depois, rumavam a uma esplanada à beira-rio, fosse Verão ou Inverno, e sentavam-se a comer um gelado e a relatar tudo o que lhes tinha acontecido ao longo da semana passada.
No dia em que completou dez anos, Maria ganhou a sua primeira bicicleta. E no dia em que completou quinze, um computador. Aos dezoito, já na universidade, recebeu um cheque que serviria de passaporte à maior das ambições de quem atinge a maioridade: tirar a carta de condução. Da menina que uma noite andara perdida pelas ruas de Lisboa, pouco ou nada restava. Maria era agora uma jovem alta, esbelta, de longos cabelos negros ondulados, muito segura de si. Sabia bem o que queria e não temia esforços para chegar mais além. Nos estudos, continuava a ser exemplar. Conseguira entrar em arquitectura com média de dezanove. Era admirada por todos os que a conheciam, desde professores a colegas, como uma verdadeira menina-prodígio, que não deixava antever as suas humildes origens. Nem os gestos nem as palavras a denunciavam. Maria era uma pessoa doce de trato e sorriso fáceis, dona de um vocabulário irrepreensível.
O curso de arquitectura é concluído com sucesso. Maria tem agora 23 anos, uma casa alugada e um futuro promissor. Certo dia, numa festa organizada em casa de amigos comuns, reencontra-se com Pedro e algo de novo acontece. Ele é já um homem maduro, quinze anos mais velho. Ela, a anos-luz da menina que uma noite andava perdida, é agora uma mulher em todo o seu esplendor. E a magia acontece.
Loucamente apaixonados, apesar da diferença de idades, Pedro e Maria decidem viver juntos. Restauram a casa cor-de-rosa e mudam-se para lá. Maria decide transformar o antigo salão de exposição no seu atelier. Os antigos brinquedos há muito que foram doados a um museu da especialidade, para que todo o mundo os pudesse apreciar. Apesar das transformações estruturais, aquele espaço mantém uma energia positiva que contagia Maria.

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