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Conto "Casa de Bonecas" - página 10

Nas paredes daquele grande salão ficaram gravadas as memórias do dia que havia de mudar o rumo de toda a sua vida. E isso inspirava Maria em cada um dos seus projectos. Sempre que necessitava de inspiração, recordava a conversa em que tinha dito a Dona Carlota que iria desenhar uma enorme casa só para si. Talvez movida pela crença de que o espírito da sua velha amiga a estaria sempre a ajudar, a inspiração acabava por surgir naturalmente, como que por magia.
Os anos foram passando: Primavera, Verão, Outono, Inverno e tudo de novo outra e outra vez. Maria tem vinte e oito anos numa tarde abafada de Verão. Está submersa em vários metros de esquiços que rascunham projectos de casas que hão-de nascer. Um pouco cansada, decide fazer uma pausa. Pega na caixinha de música que orgulhosamente exibe sobre a secretária e decide dar-lhe corda. Ao som da familiar melodia, abre a janela, deixando a brisa acariciar-lhe o rosto. Por entre as cortinas, que ficam a dançar ao ritmo do vento, Maria espreita a rua e fixa o olhar num imenso vazio. Subitamente é assaltada por uma saudade imensa da sua velha amiga. Ao mesmo tempo, sente um movimento brusco e acaricia a barriga. Maria espera para breve o nascimento do seu primeiro filho. É uma menina. E vai chamar-se Carlota.

FIM

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Reportagem # 32

Jornal "Dica da Semana", edição regional Algarve, 29 de Janeiro de 2015

FRIDAY EATS

A refeição que pedala a rua à minha frente vai saciar o cansaço de alguém que trocou horas de fome por uns tostões. A energia que sobra é a da ponta dos dedos. Três toques no ecrã e o jantar está pronto. A marmita verde atravessa a cidade, pela força estoica do homem que não fala português. Também não precisa. Basta tocar à campainha e dizer a palavra mágica de significado universal. Num silêncio solene, digno de um requintado mordomo, abre o saco térmico e serve o jantar. O pobre senhor que ganha uns tostões, hoje sente-se um rei. Espreguiçado no sofá, a lambuzar-se num menu cancerígeno qualquer, reencontra um espasmo de felicidade. Ah, como é boa a sexta-feira! Mham 

PERTENÇA VIRTUAL

Apaixonaram-se ao primeiro clique.  No início, tudo tinha a leveza eufórica da novidade. Tudo tinha o ingénuo encanto do desconhecido. Enquanto deslindavam os detalhes virtuosos da vida privada um do outro, em mensagens infinitas, contemplavam-se teclando, trocando imagens e palavras e emojis. Foram dias áureos de expectativa crescente. Quando será o nosso encontro real? A magia começava a desvanecer-se ao surgir a questão. Alguém não deseja abdicar do perfeccionismo platónico. Camuflados na virtualidade somos todos muito bons. Para quê sair do casulo para dar a conhecer o pior de nós? O melhor é encerrar o assunto enquanto ainda paira a beleza inicial. Um vai-se esfumando e saí de mansinho. As respostas chegam cada vez mais demoradas até não chegarem mais. Encontros românticos são para gente corajosa na vida real. O que aconteceu aqui foi só uma ilusão. A ludibriosa crença de ser possível uma pertença virtual.  (Publicado na revista ESPÚRIA, outubro 2023)