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A secretária

É tão bom estar aqui em silêncio. Apenas eu, o computador, o doce ruído das teclas e a nova secretária. Há muito que desejava um canto. Mesmo um recanto que fosse. Um cantinho só meu, nesta minúscula casa, onde me pudesse recolher a sós com os meus pensamentos. Um refúgio onde pudesse desembrulhar as ideias, como quem desenrola um novelo de lã. Deixar-me embalar pela Mãe noite, que na lucidez do seu silêncio, me alivia as dores, indicando-me o caminho a seguir. Amanhã, ao acordar, promete-me, o mundo parecerá melhor. E a promessa cumpre-se sempre. Mesmo quando as manhãs de chuva nos fazem resmungar muito antes de abrirmos sequer a janela para inalar a brisa matinal. O mundo, este espaço que nos acolhe os corpos, anoitece febril, adormece enfermo, mas amanhece sempre com votos de um dia feliz. E por falar em felicidade, hoje estou muito feliz com a minha nova secretária. Tão feliz que o mundo, este meu mundo que é também o vosso, me pede para partilhar este estado de graça. Sinto que chegou a hora de tirar os sonhos da gaveta. Sinto que o sonho começa aqui. O sonho começa agora.

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Reportagem # 32

Jornal "Dica da Semana", edição regional Algarve, 29 de Janeiro de 2015

FRIDAY EATS

A refeição que pedala a rua à minha frente vai saciar o cansaço de alguém que trocou horas de fome por uns tostões. A energia que sobra é a da ponta dos dedos. Três toques no ecrã e o jantar está pronto. A marmita verde atravessa a cidade, pela força estoica do homem que não fala português. Também não precisa. Basta tocar à campainha e dizer a palavra mágica de significado universal. Num silêncio solene, digno de um requintado mordomo, abre o saco térmico e serve o jantar. O pobre senhor que ganha uns tostões, hoje sente-se um rei. Espreguiçado no sofá, a lambuzar-se num menu cancerígeno qualquer, reencontra um espasmo de felicidade. Ah, como é boa a sexta-feira! Mham 

VERSÃO 4.5

Dizem-me frequentemente que ainda tenho cara de menina, que ainda sou nova, que ainda tenho a vida à minha frente. Contudo, face à cronologia, é-me inevitável constatar que mais de metade do tempo que me foi concedido já passou. O que me resta já será provavelmente menos. Se isso me inquieta? Não em termos de medo, mais em termos de pressa. Já não é pressa de viver mas de realizar, de me realizar. Apesar de já ter plantado árvores, tido filhos e publicado livros, sinto-me ainda distante da potencialidade plena do meu propósito existencial. O que me falta realizar então? Talvez plantar mais árvores e escrever mais livros, já que a possibilidade de gerar filhos tem prazo de validade e a energia vital para os cuidar vai esmorecendo. Tudo o que me falta fazer parece-me tanto para o tempo que imagino à minha frente. Não cabem tantos livros e filmes e viagens e experiências nas décadas que imagino ainda poder viver. O meu maior conflito interior neste momento é já não ser nova para tanta coi...