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O presente

Enquanto se queima um cigarro no sereno, sobra tempo para rever o dia que ficou para trás como uma página virada. A manhã começou bem cedo com a euforia que antecede uma festa. O Luís faz seis anos e todos os colegas da sala estão convidados. Para muitos uma festa de aniversário já não é novidade, mas há uma menina estreante nestas andanças que não consegue esconder o entusiasmo latente. Passeia-se pela casa de saco na mão, impaciente pela chegada da hora. “Ó mãe, vamos já?”. A mãe responde que é só mais à tardinha, à hora do lanche. No interior do saco há um presente escondido pelo papel de embrulho: uma surpresa para o Luís. Será que vai gostar? A menina questiona-se, curiosa por saber o que sairá lá de dentro, como se a prenda fosse também para ela. Todas as crianças adoram presentes. Como se nunca tivessem deixado de ser crianças, todos os adultos adoram presentes, mas habituaram-se a dizer que “não era preciso nada”. Era pois. Afinal, cada dia é uma dádiva, daí que lhe chamemos o presente. As horas parecem passar mais devagar que o habitual e a menina inquieta-se com a demora. O relógio marca por fim as cinco horas, numa tarde abafada de Primavera. O Luís já salta e brinca e ri no interior do recinto, quando os convidados começam a chegar. Como à entrada de uma mesquita, os sapatos ficam todos à porta, organizados numa estante aos quadradinhos. E, ao sentir o gosto da liberdade, os pés descalços ganham velocidade na busca cega da diversão. Há música a animar a criançada. Há balões coloridos espalhados pelo ar. Encostados à parede, há pais vigilantes com rostos cansados. Como nos casamentos de Santo António, há várias festas em simultâneo. O espaço é grande, há que rentabilizar o tempo. Num dos recantos, por essa hora, o Pedro é o rei da festa. De coroa na cabeça, está sentado numa poltrona a meio da mesa. À sua frente, um bolo colorido com velas a arder. À sua volta, um coro de vozes infantis canta os parabéns a você. Enquanto isso, a menina procura o Luís. Demora a encontrá-lo e quando o vê ele não lhe passa cartão. É um adulto que lhe sugere ao ouvido que vá cumprimentar a colega que acaba de chegar à festa. Cansado e transpirado, o menino aproxima-se a correr. Ao ver o saco na mão da menina pega nele como se só isso importasse. Apressa-se a desembrulhar o presente. Durante os segundos que fazem prolongar o suspense, larga pedaços de papel despreocupadamente pelo chão. A surpresa revela-se: é uma mota. “Mais uma mota? Está bem, vou dar à minha mãe para guardar.” E desaparece, num ápice, sem um sorriso, sem qualquer sinal de gratidão. Desprezada, a menina não se sente porque ainda não tem idade para compreender as agruras da vida. Esquece aquele momento com a pressa de brincar. Sem perder tempo, penetra num labirinto insuflável e deixa-se submergir numa piscina de bolas com a alegria de uma criança feliz.

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