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A noite de toda a vida

Havia dias que não trocavam uma só palavra. Comunicavam por gestos, monossílabos quase imperceptíveis, fazendo um enorme esforço para que nem os olhares se cruzassem. Estavam desavindos, de sentimentos às avessas, magoados por excessos de palavras que nunca deveriam ter dito. Depois de tantas e tantas discussões, reinava entre eles um silêncio de morte, um vácuo que encerrava uma dor profunda. Quando voltavam as costas, cada um para seu lado, não eram capazes de conter o choro. Um aperto no peito parecia ser capaz de espremer o coração que pouco a pouco se dissolvia em água. Nem um, nem outro avistavam futuro para além do dia de amanhã. Apesar de não o desejar de forma alguma, cada um à sua maneira estava certo que tudo o que um dia os unira teria chegado ao fim. E a sensação de nunca mais era insuportável. Nunca mais te vou beijar. Nunca mais te vou sentir. Nunca mais vou poder acreditar que haja o que houver ficaremos juntos para sempre. Nunca mais… Ambos estavam longe de imaginar que muito em breve teriam de viajar juntos. O trabalho era já o único laço que os unia. Dever é dever, por isso partiram, em silêncio, lado a lado. Enquanto os corpos se elevavam, o solo ia ficando para trás, cada vez mais lá em baixo, casas e pessoas, miniaturas mil, iam perdendo a cor e a forma até não serem mais que uma mancha, contornos de um mapa sem legenda. Aterraram num país distante após duas horas de cerrado silêncio. Podiam ouvir e sentir a respiração quente um do outro e isso era incómodo. Tal como a presença do cheiro. Tinham descoberto que se amavam quando perceberam que não podiam passar sem o odor um do outro. Era uma espécie de droga, um vício insaciável que os consumia, que obrigava os corpos a consumir-se. Mal tiveram tempo para parar no hotel. Havia reuniões marcadas e nos negócios nunca há tempo a perder. Tempo perdido é dinheiro perdido. E o trabalho ajuda sempre a esquecer os males de amor. Quanto pior se sentiam, mais entusiasmo eram capazes de projectar nos objectivos profissionais que os moviam e que tanto gozo lhes davam. Ela gostava de o ouvir falar inglês na perfeição. Fitava-o com um misto de atenção e orgulho nas suas exibições públicas. Era um homem muito inteligente e admirava-o por isso. Já tinha aprendido muito com ele e isso nunca havia de esquecer. Ele fixava-se na beleza dela. Costumava dizer-lhe ao ouvido que era a mulher mais bela que alguma vez vira. Disfarçava bem, mas sempre que outro homem se aproximava com sorrisos ou algum gesto mais próximo, de embevecido passava subitamente a enraivecido. Não suportava vê-la demasiado perto de outro alguém. Chegou a noite e depois do jantar cada um rumou ao seu quarto. Lado a lado, os quartos de hotel tocavam-se no limite das paredes. Cada um imaginava o que o outro estaria a fazer. Ele ligava logo a televisão. Ela gostava de se refrescar, acarinhar-se de cremes e cheiros bons, antes de se enfiar na cama. Vou apagar a luz, pensava ela desejando ouvir bater na porta. Preciso dela, pensava ele, enquanto ganhava coragem para sair do quarto. E ele acabou por bater à porta. E ela acabou por abrir. Sem hesitar. E antes que pudessem trocar uma só palavra, as bocas colaram-se e calaram-se num beijo que durou um momento sem fim. Respiravam-se, transpiravam-se, corpo com corpo, pele com pele, numa atracção quase fatal. Na penumbra do quarto, eram duas sombras que se moviam a contra-luz. Tacteavam os contornos um do outro, como se pudessem ter um dom que fosse capaz de fixar aquela memória visual na ponta dos dedos, que em vez de efémera pudesse ser eterna, que pudesse perdurar para além dos limites da memória. Amo-te, pensou ela, sem ser capaz de o dizer. Amo-te, afirmou ele corajoso, certo de que o silêncio dela confirmava o que não precisava ouvir. No mês seguinte, as regras não se cumpriram. Nove luas depois um milagre havia de suceder.

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