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O regresso da mana Bia

Já não me lembro do dia em que partiste para o Brasil. Tinha eu quinze anos. Entretanto, passou toda uma vida. Tenho uma vaga ideia, memórias soltas, esfumadas pelo esquecimento que a passagem dos anos nos vai impondo. Agora que tenho vagar, não são poucas as vezes que me sento, a velha caixa de sapatos sobre o colo, as mãos enrugadas folheando memórias como se fossem restos de ti, sobras da vida que não vivemos juntas. Eu cá, tu lá. Eu em Portugal. Tu no Brasil. Entre nós um Oceano de saudade. Casei-me pouco depois da tua partida. A nossa mãe, viúva, convenceu-me de que seria o melhor para mim. Até hoje, mana, duvido que as mães tenham sempre razão naquilo que dizem. Mas, ao menos, não fiquei desamparada como receava a nossa mãe. Até hoje, tenho ao meu lado um homem que me preenche os dias. Ainda que quase só de arrelias. Fomos sabendo uma da outra por carta. Era uma euforia sempre que abria a caixa do correio e via aquele envelope branco, riscado a azul e vermelho no rebordo, marcado a carimbo “via aérea”. Primeiro, os filhos foram casando. Depois, os netos foram chegando. E tu, minha irmã, ias envelhecendo a cada fotografia. E a cada carta trocada ia-se desvanecendo a esperança de um reencontro possível. Recordo ainda hoje o desgosto da nossa mãe que fechou os olhos para sempre sem nunca mais te ver. Foi como se tivesses morrido aos quarenta anos e nós tivéssemos tido que carregar uma vida inteira o luto de uma partida prematura. Durante o longo mês que demorou a viagem de navio, sonhavas com o el dourado, encontravas na esperança de uma vida melhor o conforto possível. Nas tuas preces silenciosas à luz do luar, agradecias ter encontrado uma fuga para os teus filhos, que escaparam por um fio a um destino inevitável: a guerra colonial. Sem ouvir sequer a tua voz, passei a década de cinquenta, passei toda a década de sessenta. Nessa época, emigrei também. Aprendi francês na casa de senhores onde servia. Eu, que nem a quarta classe tinha, falava estrangeiro, sabia pedir na língua deles o pão e a fruta e a carne no supermercado. Quando consegui juntar dinheiro para uma casa, regressei a Portugal. E de ti, nada. A vida não melhorava como tinhas esperado, conforme tinhas desejado. Não sobrava nada que chegasse para voltar. Na década de setenta, já na casa nova, pudemos voltar a ouvir-nos. Do outro lado da linha, nos Natais, Páscoas e aniversários, surgias com uma nova voz, num tom adocicado perguntavas à nossa mãe: “como vai a senhóra?”. Ó mana, não existe outra palavra: que saudades me deixaste. As águas que te levaram nunca mais te trouxeram. Largaste o teu corpo noutro país. Deixaste-te enterrar noutro chão, noutra terra, que te acolheu nunca sendo tua. A morte corta o cordão umbilical que nos amarra à vida. Quando partiste, há já uns anos, a nossa conexão foi interrompida. O pouco que ia sabendo de ti, tornou-se cada vez menos, até ser nada. Há dias, o futuro devolveu-nos o passado. Num milagre tecnológico, de repente, a minha neta encontrou os teus netos e começaram logo a falar online. Sabes o que é isso, mana? Não deves saber. Não é do teu tempo. Mas o melhor ainda está por vir. O sangue do teu sangue vem a caminho. Regressas com o nome de Alberto, o mesmo que deste ao teu filho e que hoje é o teu neto.

Comentários

  1. Claudia fico sem palavras voce conseguiu extrair toda essencia de uma vida , um sonho que transformou na distancia uma historia de uma familia .
    Ate hoje nao consigo entender , fico a me perguntar o que valeu .

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  2. Adorei....Sinto na carne a mesma saudade. Tantas saudades.

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