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Eterno até ao fim


Tarde demais. Sobravam-lhe algumas horas ou poucos minutos talvez. Ninguém sabia ao certo quanto tempo lhe restava. Nos seus olhos, dois pontos de luz, cintilava ainda uma esperança vaga e fosca em sabe-se lá o quê. Quando aquele vulto amado atravessou a porta do quarto, ela reconheceu-o logo. Por instantes, a consciência dopada em delírio voltou a si, capaz de arrancar de um rosto moribundo um último sorriso triste. Ela sabia que era chegada a hora de dizer adeus. Não era um final feliz, porque os finais nunca podem ser felizes quando alguém parte de vez. Queria ser capaz de falar. Se o conseguisse, dir-lhe-ia adeus meu amor. Mas as palavras morrem muito antes de o coração parar de bater. Ficam presas na garganta e ajudam o travar da respiração. A mão viva sobre a mão morta devolve-lhe um pensamento quente: a memória de um instante feliz. Voltar a ver aqueles olhos e sentir de novo o coração a bater, tambor descompassado, na ilusão de poder renascer. A respiração sôfrega de quem precisa de um beijo urgente e um lamento infinito: tenho de ir com vontade de ficar. Nunca soube bem se vi em ti desgraça ou sorte. Sei apenas o que senti. Uma vontade galopante de mais e mais. Hoje só queria mais tempo, mais uma noite ou apenas uma tarde daquelas em que esquecíamos o mundo debaixo dos lençóis. O meu rosto no teu peito, o cheiro a nós colado à pele e depois entranhado nas almofadas dias e dias sem fim. Os teus olhos, amor, dizem-me o que não quero ouvir. Não temos mais tempo. Não haverá mais tardes nem noites nem madrugadas. Amanhã serei nada e tu apenas silêncio vagueando pelas memórias do que fomos. Um dia fomos nós. Vidas entrelaçadas como as nossas mãos agora. Está na hora. Agora vai. Aproveita que ainda podes ser feliz. Esgota o teu tempo com sensações boas. Procura sempre a emoção. Não chores por mim, não aqui, não agora. Podes fazê-lo mais tarde, se quiseres, quando eu já não estiver a ver.

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Reportagem # 32

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