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Faz acontecer

Aqui, onde tudo parece feito de gelo, os dias arrastam-se vagarosos, como se não quisessem passar. No fundo, eles até têm pressa, mas correr cansa e os dias não estão para isso. Preferem rastejar como cobras que, sem hora marcada, um dia chegarão ao destino. Cada dia a mais é um dia a menos. Numa folha branca colada na parede, vêem-se pauzinhos riscados, de cinco em cinco, como os desenhados por um presidiário que conta os dias que faltam para a liberdade. Acordar e esperar. Trabalhar e esperar. Voltar e esperar. E ver a noite chegar, entrando pela janela, cada vez mais escura e fria, como uma punição. E antes que o dia volte a nascer, claro e quente, o desespero bate à porta e alguém o convida a entrar. Silencioso, ninguém dá por ele. Fica sentado no sofá, como um fiel cão de guarda que sabe lamber a ferida aberta que dói e faz chorar. A música que toca é sempre a mesma. A letra de cada canção conta uma história que não é a nossa, mas podia ser. Um cantor espanhol grita palavras bonitas num ritmo cigano. E tu, e tu aí. E eu, e eu aqui, tão longe e tão perto de ti. Há um livro abandonado a um canto faz dias. No seu silêncio de objecto consegue ouvir o pensamento de quem não o lê. Ideias cruzadas à velocidade da luz geram curto-circuitos mentais. O cinzeiro reclama de sujo. Cada cigarro, esmagado com a fúria com que se mata um insecto, depois de apagado não incomoda mais. Tantos canais e nada para ver. A televisão é só um conjunto de vozes que enche a casa, num cochicho que faz companhia. As ideias não fluem mais entre quatro paredes. Neste lugar claustrofóbico chamado casa, não há mais espaço para a falta de soluções. Basta! Não aguento mais. Amanhã vou entrar em acção.

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Reportagem # 32

Jornal "Dica da Semana", edição regional Algarve, 29 de Janeiro de 2015

FRIDAY EATS

A refeição que pedala a rua à minha frente vai saciar o cansaço de alguém que trocou horas de fome por uns tostões. A energia que sobra é a da ponta dos dedos. Três toques no ecrã e o jantar está pronto. A marmita verde atravessa a cidade, pela força estoica do homem que não fala português. Também não precisa. Basta tocar à campainha e dizer a palavra mágica de significado universal. Num silêncio solene, digno de um requintado mordomo, abre o saco térmico e serve o jantar. O pobre senhor que ganha uns tostões, hoje sente-se um rei. Espreguiçado no sofá, a lambuzar-se num menu cancerígeno qualquer, reencontra um espasmo de felicidade. Ah, como é boa a sexta-feira! Mham 

PERTENÇA VIRTUAL

Apaixonaram-se ao primeiro clique.  No início, tudo tinha a leveza eufórica da novidade. Tudo tinha o ingénuo encanto do desconhecido. Enquanto deslindavam os detalhes virtuosos da vida privada um do outro, em mensagens infinitas, contemplavam-se teclando, trocando imagens e palavras e emojis. Foram dias áureos de expectativa crescente. Quando será o nosso encontro real? A magia começava a desvanecer-se ao surgir a questão. Alguém não deseja abdicar do perfeccionismo platónico. Camuflados na virtualidade somos todos muito bons. Para quê sair do casulo para dar a conhecer o pior de nós? O melhor é encerrar o assunto enquanto ainda paira a beleza inicial. Um vai-se esfumando e saí de mansinho. As respostas chegam cada vez mais demoradas até não chegarem mais. Encontros românticos são para gente corajosa na vida real. O que aconteceu aqui foi só uma ilusão. A ludibriosa crença de ser possível uma pertença virtual.  (Publicado na revista ESPÚRIA, outubro 2023)