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Dia do (Santo) Pai


Quando fui a Roma não vi o Papa. Ardiam os primeiros dias de Agosto e Sua Santidade havia-se retirado para a residência de férias em Castel Gandolfo, um pequeno paraíso rural nas margens do Lago Albano, a meia hora da capital. Foi lá que se deixou avistar, numa celebração dominical do Angelus. O recém-chegado Papa pouco tinha de novo. Bento XVI, um septuagenário, por todos era visto como “um Papa de transição”. Um Santo Padre alemão, de ar grave e austero, somava simpatias sempre que derramava a voz sobre os fiéis. Num tom de veludo, um italiano esforçado derrubava o alemão entranhado nas cordas vocais e espalhava-se pela multidão como um bálsamo. Os instantes que antecedem o momento de avistar o Papa são de grande emoção, mesmo para um não crente. Há algo de paternal naquela figura branca de braços erguidos ao céu. Até o ateu mais convicto aceita a bênção papal com a maior paz de espírito. As mensagens de fé renovam esperanças e devolvem tranquilidade aos espíritos mais inquietos. São minutos de um calor humano quase etéreo, a multidão de olhos fixos no mesmo ponto, de ouvidos a aspirar as mesmas palavras carregadas de bem-querer. Com a força de um vírus, há uma energia que não se vê nem se explica mas que contagia sempre toda a massa humana em redor. Quatro meses antes, nos primeiros dias de Abril de 2005, num inusitado início de Primavera triste, o mundo chorava a morte de João Paulo II. O Papa que conhecera toda a minha vida como o único, nunca mais iria aparecer na televisão. Guiada pelo histerismo mediático criado em redor, deixei-me contaminar pela tristeza da saudade imediata de quem perde um ente querido. “Morreu João Paulo II”, anunciou o jornalista. E, no instante seguinte, no meu peito despontou uma dor fininha, a garganta apertou-se de nós e os olhos inundaram-se de comoção. Oito anos depois, a chaminé do Vaticano voltou a cuspir fumo. “É branco”, gritavam vozes eufóricas em várias línguas na ansiedade de conhecer um rosto. O resignado Bento XVI, remeteu-se ao retiro espiritual, deixando o lugar vago a um novo nome, a uma nova voz. O novo comandante da igreja católica estava eleito e em breve iria acenar da famosa janela da basílica de São Pedro. “Habemos Papam” precede o anúncio de Francisco, que surpreende tanto pelo nome como pela origem. Sorridente, o Papa jesuíta que veio da Argentina diz que o foram buscar “ao fim do mundo”. A multidão rejubila, numa empatia imediata e feliz. Hoje, 19 de Março de 2013, a data da entronização do novo Papa Francisco coincide com a celebração do dia do pai. A ele, que não sendo pai de ninguém pode sentir-se pai de todos, os votos de um pontificado norteado pelos valores basilares da paternidade, num tempo em que esta humanidade órfã, onde me incluo, bem está carente do aconchego de um Santo Pai.

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