Avançar para o conteúdo principal

Primavera


Lá fora, iluminada e quente, a natureza já canta e os sorrisos regressam mascarados aos rostos saudosos de cor. Não há tristeza que se consiga impor à alegria transbordante da vida mais despida e leve. Os corpos vaidosos, mais ou menos belos, vagueiam vadios. Portas escancaradas apontam o caminho da rua como o da salvação. De todas as casas onde mora gente vêem-se sair pernas ligeiras em fuga. Rumam para algum lugar, mais longe ou mais perto, ao ar livre. São como sofridos prisioneiros libertados de um longo jejum de luz e calor. A chama renascida do sol faz explodir a vontade. Troca-se o cinzento dos dias pelo azul do céu, pelo azul do mar. Troca-se as gotas de chuva por raios de sol e os centros comerciais por esplanadas plantadas na areia. Troca-se o mau pelo bom humor e até os corpos flácidos e sedentários querem ser trocados por outros, como num truque de magia. Enquanto se abre e fecha os olhos, um todo-poderoso esvazia pneus e faz nascer músculos emergentes como cogumelos selvagens. Este tempo é doce; sabe a gelados lambidos com o prazer tranquilo das tardes grandes. Este tempo é de união; junta amigos à volta de uma mesa cheia de palavras soltas e garrafas vazias. A língua desenrola-se, a pele revela-se e os pés descalços podem voltar a pisar a areia sem medo. Os corpos libertados são mais felizes, só porque o ar se respira com conforto. Lá fora, elas já voam e nos tectos das varandas já nascem ninhos. As andorinhas não se enganam, agora é que é: chegou a Primavera.

Comentários

Mensagens populares deste blogue

VERSÃO 4.5

Dizem-me frequentemente que ainda tenho cara de menina, que ainda sou nova, que ainda tenho a vida à minha frente. Contudo, face à cronologia, é-me inevitável constatar que mais de metade do tempo que me foi concedido já passou. O que me resta já será provavelmente menos. Se isso me inquieta? Não em termos de medo, mais em termos de pressa. Já não é pressa de viver mas de realizar, de me realizar. Apesar de já ter plantado árvores, tido filhos e publicado livros, sinto-me ainda distante da potencialidade plena do meu propósito existencial. O que me falta realizar então? Talvez plantar mais árvores e escrever mais livros, já que a possibilidade de gerar filhos tem prazo de validade e a energia vital para os cuidar vai esmorecendo. Tudo o que me falta fazer parece-me tanto para o tempo que imagino à minha frente. Não cabem tantos livros e filmes e viagens e experiências nas décadas que imagino ainda poder viver. O meu maior conflito interior neste momento é já não ser nova para tanta coi...

RECONFINAMENTO - III

Os dias passam velozes mas o tempo parece não avançar. As soluções demoram, ninguém trava a morte, o cárcere dos dias é uma asfixia doméstica sem direito a balões de oxigénio. Resta-nos fechar os olhos e apelar à imaginação: estar aonde não estamos, ir aonde não vamos. O pensamento pode ser o pior ou o nosso melhor aliado. As saudades têm nome e rosto e os beijos e abraços são promessas dolorosas por cumprir. Queremos todos o mesmo. O que mais desejamos é que este tempo passe e o mundo avance para outra realidade. Uma vida nova, sem distâncias de pele, na qual nos possamos voltar a cheirar e tocar ao sabor do desejo.

Quando a avó me levava ao parque

Quando a minha avó me levava ao parque, eu tinha cinco anos e ainda sabia ser feliz. A avó levava sempre a minha mão bem apertada pelo medo de não me deixar fugir. Esses dias eram sempre finais de tarde de verão, daqueles que o Sol gosta de prolongar até que resolve esconder-se. Depois de jantar, lá íamos nós, rua acima, pela fresquinha – como ela dizia – agradada com a brisa que antecede o anoitecer. Lá em casa, jantávamos cedo, às seis da tarde já a comida estava na mesa. Era assim por causa do avô. Ele chegava das obras com a roupa e as botas pesadas de cimento e tomava sempre banho antes de ocupar o seu lugar cativo à mesa. Depois, com as mãos espessas e ásperas de tanto acartar baldes de massa, cortava uma fatia de pão. Vida dura a do avô. As obras começavam sempre cedo, sobretudo no verão, para fugir à braseira estival. Vida dura a da avó. Uma vida feita de espera e de cuidar dos outros. Mas nem um lamento. Daquela boca só saíam jóias e rebuçados. Daquelas mãos, só carinho. Da...