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Sempre chegamos ao sítio aonde nos esperam*


Alice acaba de ver um filme inspirador e detém-se a pensar. No conforto silencioso da sua casa, a madrugada vai entrando sem trazer o sono. Traz porém lembranças de dias distantes, que parecem agora mais próximos que nunca à meia-luz do candeeiro de canto que confere à sala um calor de lareira improvisado. A Primavera, já anunciada, faz-se demorar com requintes de malvadez, para gáudio do pijama e das meias de lã que persistem colados ao corpo como as ideias à mente. “Quantas pessoas conheço hoje que não faziam parte da minha vida há cinco anos?”, pensa subitamente Alice, de si para si, tentando vislumbrar rostos através da ténue cortina do pensamento. E não tarda em irromper uma miragem daquele sorriso, hoje tão presente, daquele semblante com cheiro a beleza que agora lhe preenche os dias. E como pipocas a saltar do tacho, começam a explodir nomes e faces e vozes de todas as pessoas que ontem não eram sequer personagens imaginárias e hoje são presenças de carne e osso. Ligadas por um traço comum, todas surgiram no seu caminho por mero acaso, reflete Alice. Sem que tivesse feito o menor esforço para as encontrar, cada uma daquelas vidas cruzou-se com a sua num qualquer instante sem hora marcada. Bastava que no dia x não tivesse escolhido o caminho z e tudo teria sido diferente. Agora, fora do tempo em que os encontros acontecem, cada uma daquelas pessoas revelava-se uma valiosa peça de um enorme puzzle em construção. Como um novelo desenrolado, as ideias foram rebolando pelas horas tardias. “Se eu não tivesse conhecido o José, não teria feito aquela viagem. E se não tivesse feito aquela viagem jamais teria conhecido a Maria que hoje me faz tão feliz”, lembra-se de ter pensado antes de cerrar as pálpebras sobre os olhos. E foi coberta pela manta de pensamentos que adormeceu desengonçada no sofá. E foi quentinha que se ergueu, livre de dores e rabugice, despertada pelos beijos da manhã, ternamente pousados no seu rosto pelos primeiros raios de sol. *José Saramago, O livro dos itinerários, epígrafe de “A viagem do elefante”.

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Reportagem # 32

Jornal "Dica da Semana", edição regional Algarve, 29 de Janeiro de 2015

FRIDAY EATS

A refeição que pedala a rua à minha frente vai saciar o cansaço de alguém que trocou horas de fome por uns tostões. A energia que sobra é a da ponta dos dedos. Três toques no ecrã e o jantar está pronto. A marmita verde atravessa a cidade, pela força estoica do homem que não fala português. Também não precisa. Basta tocar à campainha e dizer a palavra mágica de significado universal. Num silêncio solene, digno de um requintado mordomo, abre o saco térmico e serve o jantar. O pobre senhor que ganha uns tostões, hoje sente-se um rei. Espreguiçado no sofá, a lambuzar-se num menu cancerígeno qualquer, reencontra um espasmo de felicidade. Ah, como é boa a sexta-feira! Mham 

PERTENÇA VIRTUAL

Apaixonaram-se ao primeiro clique.  No início, tudo tinha a leveza eufórica da novidade. Tudo tinha o ingénuo encanto do desconhecido. Enquanto deslindavam os detalhes virtuosos da vida privada um do outro, em mensagens infinitas, contemplavam-se teclando, trocando imagens e palavras e emojis. Foram dias áureos de expectativa crescente. Quando será o nosso encontro real? A magia começava a desvanecer-se ao surgir a questão. Alguém não deseja abdicar do perfeccionismo platónico. Camuflados na virtualidade somos todos muito bons. Para quê sair do casulo para dar a conhecer o pior de nós? O melhor é encerrar o assunto enquanto ainda paira a beleza inicial. Um vai-se esfumando e saí de mansinho. As respostas chegam cada vez mais demoradas até não chegarem mais. Encontros românticos são para gente corajosa na vida real. O que aconteceu aqui foi só uma ilusão. A ludibriosa crença de ser possível uma pertença virtual.  (Publicado na revista ESPÚRIA, outubro 2023)