Avançar para o conteúdo principal

Quanto vale um escritor?

Alice Munro (Canadiana, 82 anos) - Prémio Nobel da Literatura 2013
Num passeio pelo Chiado, não resisto ao chamamento bicentenário da montra da Bertrand. Um tapete de capas de Alice Munro cobre o escaparate, condenando os autores circundantes ao anonimato. A curiosidade impele-me a entrar e os meus olhos só veem Alice, Alice, Alice. O meu pensamento anseia soletrar a escrita (até agora desconhecida) daquela mulher que acaba de merecer o prémio máximo que um escritor pode augurar: o Nobel da Literatura. Segundos depois, com “Fugas” na mão, suspiro. Leio as críticas da contracapa. Admiro a fotografia da senhora de cabelo branco e olhos claros, ruga a ruga. Julgo-a bonita apesar da idade. Imagino-a na juventude e gabo-lhe com inveja o mérito do prémio alcançado. O reconhecimento mundial demorou oitenta e dois anos a chegar e, de um dia para o outro, ficou novecentos e quinze mil euros mais rica. Terá ainda tempo e saúde suficientes para usufruir? Espero bem que sim. Se bem que o Nobel nesta idade é mais uma pena de morte, veja-se o caso de Saramago. Hoje, uma outra mulher é notícia no mundo da literatura. A escrita da estreante Gabriela Ruivo Trindade valeu-lhe cem mil euros. Num primeiro romance, baseado numa história familiar, arrebata o prémio Leya 2013. “Uma outra voz” ergue-se por entre mais de outras quatrocentas que não foram suficientemente fortes para se fazer ouvir. Será tudo lixo? Não creio. Mas, nestas andanças do dom da palavra, é fácil perceber que o melhor júri chama-se tempo e, por vezes, o veredicto faz-se demorar. Quantas vezes, o tempo de uma vida inteira.

Comentários

Mensagens populares deste blogue

Reportagem # 32

Jornal "Dica da Semana", edição regional Algarve, 29 de Janeiro de 2015

FRIDAY EATS

A refeição que pedala a rua à minha frente vai saciar o cansaço de alguém que trocou horas de fome por uns tostões. A energia que sobra é a da ponta dos dedos. Três toques no ecrã e o jantar está pronto. A marmita verde atravessa a cidade, pela força estoica do homem que não fala português. Também não precisa. Basta tocar à campainha e dizer a palavra mágica de significado universal. Num silêncio solene, digno de um requintado mordomo, abre o saco térmico e serve o jantar. O pobre senhor que ganha uns tostões, hoje sente-se um rei. Espreguiçado no sofá, a lambuzar-se num menu cancerígeno qualquer, reencontra um espasmo de felicidade. Ah, como é boa a sexta-feira! Mham 

PERTENÇA VIRTUAL

Apaixonaram-se ao primeiro clique.  No início, tudo tinha a leveza eufórica da novidade. Tudo tinha o ingénuo encanto do desconhecido. Enquanto deslindavam os detalhes virtuosos da vida privada um do outro, em mensagens infinitas, contemplavam-se teclando, trocando imagens e palavras e emojis. Foram dias áureos de expectativa crescente. Quando será o nosso encontro real? A magia começava a desvanecer-se ao surgir a questão. Alguém não deseja abdicar do perfeccionismo platónico. Camuflados na virtualidade somos todos muito bons. Para quê sair do casulo para dar a conhecer o pior de nós? O melhor é encerrar o assunto enquanto ainda paira a beleza inicial. Um vai-se esfumando e saí de mansinho. As respostas chegam cada vez mais demoradas até não chegarem mais. Encontros românticos são para gente corajosa na vida real. O que aconteceu aqui foi só uma ilusão. A ludibriosa crença de ser possível uma pertença virtual.  (Publicado na revista ESPÚRIA, outubro 2023)