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Para onde vão os guarda-chuvas

"Para onde vão os guarda-chuvas", Afonso Cruz, Alfaguara
Demorei uns três meses a ler este livro. Não que fosse aborrecido, mas demasiado extenso para os meus curtos tempos livres. O tamanho e peso da obra também não fazem dela a melhor companhia de passeio: 620 páginas de papel ainda pesam. Já sei, há os e-books… Mas ainda não consegui converter-me. Não há prazer igual ao de folhear e cheirar papel. Agora, o conteúdo. Não destaco o tema, mas o estilo. Afonso Cruz joga xadrez com as palavras. Põe e dispõe delas com a inteligência de um jogador de tabuleiro. A sua escrita é gráfica, feita de explicações desenhadas, ora preto no branco, ora vice-versa. O autor repete-nos incansável, como um aviso: tudo na vida são contrastes: “lágrimas seguidas de risos, euforias precedidas de desgostos”. Este escritor, que integra a nova geração de ouro da literatura portuguesa, é já um monstro literário. Num tom muito próprio, usa uma voz grossa para nos gritar palavras meigas. É senhor de uma escrita sem regras. Solta o freio às palavras e deixa-as conjugar-se de forma selvagem, contando uma história lógica de uma forma por vezes abstracta. Longo mas nada maçador, “Para onde vão os guarda-chuvas” é uma leitura obrigatória para quem gosta de ler mas, essencialmente, para quem gosta de escrever e procura um autor de referência que lhe sirva de inspiração. De que fala o livro? De um Oriente efabulado onde um pai que perde o filho tenta sobreviver à perda adoptando outra criança...

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