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Avó-milagre

Otília, 2008

Todos temos, pelo menos, um anjo da guarda. Neste mundo, o meu encarnou numa querida senhora, que tenho a feliz sorte de ser minha avó. Quando penso nela, fogem-me as palavras, por ser tanto para mim. Mais do que uma jóia rara ou um tesouro, a minha avó é uma bênção e eu sou afortunada só porque ela cuida de mim. Em todos os momentos decisivos, de alegria ou dor, sem pedir ou chamar, lá está ela, sempre ao meu lado, ombro amigo, palavra de consolo, mão na mão, a oferecer a misericórdia do seu sorriso. Como é bonita a bondade da minha avó! Nunca conheci outra igual. É genuína e gratuita, quase sobrenatural. Jamais pressupõe condição ou moeda de troca. Toda ela se oferece aos outros, numa humanidade santificada de quem só conhece o bem. Como é bom ter uma avó! Como é bom ser trintona e ter uma avó! Avó, como é bom atender o teu beijinho de boa noite, diariamente, depois do jantar. Como é bom saber que rezas sempre por mim, que sonhas os meus sonhos, que te realizas quando me realizo. Nada queres para ti e quando te ofereço algo, porque o mereces, consideras sempre demais. “Eu só quero que sejas feliz!”, dizes-me, repetidas vezes. Como se a minha felicidade fosse o melhor presente que a vida te pode dar. Como é bom ser amada assim! Como serei capaz de viver um dia sem este amor? Nem sei… Mas hoje, no dia em que ganhas o estatuto de octogenária, aceita, o presente é teu. Esta declaração de amor é para ti. Quero que a leias, hoje, em vida. E a releias até ao último dos teus dias, para que, nunca, nunca te esqueças como és importante para mim. Avó-milagre! Assim te chamo desde que te vi sobreviver ilesa a um AVC. Se até os médicos se espantam, quanto mais eu que tanto pedi ao céu mais uns anos da tua alegre companhia. Demora-te, sim, não tenhas pressa de partir para lugar nenhum. A minha felicidade, aqui e agora, depende muito da tua presença.

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