Avançar para o conteúdo principal

Saudade sem lágrimas



O luto é o tempo que levamos a chorar a dor. Depois, tudo se transforma em tempo e os que partiram antes de nós só morrem no dia em que os esquecemos. Passaram três anos e ainda não há um dia que passe sem pensar em ti. Mas já há algum tempo que deixei de chorar. Recordo-te na memória dos bons momentos e nas tuas frases inesquecíveis. Recordo-te no cheiro a polvo assado que fumega nas feiras e no borbulhar da cerveja sobre a mesa do bar. Recordo-te sempre que o meu olhar se perde no mar sem princípio nem fim, o mesmo que te levou ao fim do mundo, vezes sem conta, e te trouxe um dia de volta para mim. Recordo-te nas feições da nossa menina, retrato vivo do teu olhar.
Hoje é dia internacional da paz e dia mundial da gratidão e faz tanto sentido teres partido nesta data. Fizemos as pazes e serei eternamente grata pelo caminho de aprendizagem que percorremos juntos. Não me arrependo nem lamento uma virgula, porque tudo foram tijolos na construção da minha identidade. Devolvo-te o sorriso que me ofereces em cada fotografia, elevo uma oração ao teu espírito, conto a tua história repetidamente e eternizo-te assim, como se fosses um livro de cabeceira ao qual regresso sempre, folheando e sublinhando, vincando bem as páginas, até te saber de cor. Até ter a certeza que o futuro saberá que um dia exististe.

Comentários

Mensagens populares deste blogue

VERSÃO 4.5

Dizem-me frequentemente que ainda tenho cara de menina, que ainda sou nova, que ainda tenho a vida à minha frente. Contudo, face à cronologia, é-me inevitável constatar que mais de metade do tempo que me foi concedido já passou. O que me resta já será provavelmente menos. Se isso me inquieta? Não em termos de medo, mais em termos de pressa. Já não é pressa de viver mas de realizar, de me realizar. Apesar de já ter plantado árvores, tido filhos e publicado livros, sinto-me ainda distante da potencialidade plena do meu propósito existencial. O que me falta realizar então? Talvez plantar mais árvores e escrever mais livros, já que a possibilidade de gerar filhos tem prazo de validade e a energia vital para os cuidar vai esmorecendo. Tudo o que me falta fazer parece-me tanto para o tempo que imagino à minha frente. Não cabem tantos livros e filmes e viagens e experiências nas décadas que imagino ainda poder viver. O meu maior conflito interior neste momento é já não ser nova para tanta coi...

RECONFINAMENTO - III

Os dias passam velozes mas o tempo parece não avançar. As soluções demoram, ninguém trava a morte, o cárcere dos dias é uma asfixia doméstica sem direito a balões de oxigénio. Resta-nos fechar os olhos e apelar à imaginação: estar aonde não estamos, ir aonde não vamos. O pensamento pode ser o pior ou o nosso melhor aliado. As saudades têm nome e rosto e os beijos e abraços são promessas dolorosas por cumprir. Queremos todos o mesmo. O que mais desejamos é que este tempo passe e o mundo avance para outra realidade. Uma vida nova, sem distâncias de pele, na qual nos possamos voltar a cheirar e tocar ao sabor do desejo.

Quando a avó me levava ao parque

Quando a minha avó me levava ao parque, eu tinha cinco anos e ainda sabia ser feliz. A avó levava sempre a minha mão bem apertada pelo medo de não me deixar fugir. Esses dias eram sempre finais de tarde de verão, daqueles que o Sol gosta de prolongar até que resolve esconder-se. Depois de jantar, lá íamos nós, rua acima, pela fresquinha – como ela dizia – agradada com a brisa que antecede o anoitecer. Lá em casa, jantávamos cedo, às seis da tarde já a comida estava na mesa. Era assim por causa do avô. Ele chegava das obras com a roupa e as botas pesadas de cimento e tomava sempre banho antes de ocupar o seu lugar cativo à mesa. Depois, com as mãos espessas e ásperas de tanto acartar baldes de massa, cortava uma fatia de pão. Vida dura a do avô. As obras começavam sempre cedo, sobretudo no verão, para fugir à braseira estival. Vida dura a da avó. Uma vida feita de espera e de cuidar dos outros. Mas nem um lamento. Daquela boca só saíam jóias e rebuçados. Daquelas mãos, só carinho. Da...