Avançar para o conteúdo principal

O outro lado da morte

A tua última morada foi o meu coração. À boleia da memória, é aqui que regressas, sempre que te aperta a saudade. Deixo a porta encostada, não precisas de chave, nem de hora para voltar. Bate apenas ao de leve, para que a distração não me apanhe num susto e um grito não espante os vizinhos. Às três pancadas, entra à vontade, estou sempre tua espera. És tu quem me traz flores e até aprendeste a rezar. Num reencontro de mãos dadas, agradecemos ao Pai Nosso e prometemos não chorar no adeus. Quando do teu corpo em brasa apenas restou a cinza do teu nome, guardaram-te como um tesouro num cofre. Fui poupada às romarias de finados e às lágrimas de cemitério. Agora, só choramos de alegria quando o sonho de um abraço quase parece real. Voltas a ter corpo e sorris para mim como antes. Estás na mesma. Eu envelheço mas tu não. Tomo-te as mãos num beijo e sorrio-te de volta, perguntando: Como é que consegues enganar a morte e fugir dessa prisão para me ver? Ludibriando-a, respondes, num piscar de olho. Finjo que me esqueci de um livro ou de um filme e peço licença para o vir buscar. Ela que é toda intelectual, acreditas que até me agradece? Entre suspiros e bocejos, diz que já não suporta mais o tédio ocioso da eternidade.

Comentários

Mensagens populares deste blogue

Reportagem # 32

Jornal "Dica da Semana", edição regional Algarve, 29 de Janeiro de 2015

FRIDAY EATS

A refeição que pedala a rua à minha frente vai saciar o cansaço de alguém que trocou horas de fome por uns tostões. A energia que sobra é a da ponta dos dedos. Três toques no ecrã e o jantar está pronto. A marmita verde atravessa a cidade, pela força estoica do homem que não fala português. Também não precisa. Basta tocar à campainha e dizer a palavra mágica de significado universal. Num silêncio solene, digno de um requintado mordomo, abre o saco térmico e serve o jantar. O pobre senhor que ganha uns tostões, hoje sente-se um rei. Espreguiçado no sofá, a lambuzar-se num menu cancerígeno qualquer, reencontra um espasmo de felicidade. Ah, como é boa a sexta-feira! Mham 

PERTENÇA VIRTUAL

Apaixonaram-se ao primeiro clique.  No início, tudo tinha a leveza eufórica da novidade. Tudo tinha o ingénuo encanto do desconhecido. Enquanto deslindavam os detalhes virtuosos da vida privada um do outro, em mensagens infinitas, contemplavam-se teclando, trocando imagens e palavras e emojis. Foram dias áureos de expectativa crescente. Quando será o nosso encontro real? A magia começava a desvanecer-se ao surgir a questão. Alguém não deseja abdicar do perfeccionismo platónico. Camuflados na virtualidade somos todos muito bons. Para quê sair do casulo para dar a conhecer o pior de nós? O melhor é encerrar o assunto enquanto ainda paira a beleza inicial. Um vai-se esfumando e saí de mansinho. As respostas chegam cada vez mais demoradas até não chegarem mais. Encontros românticos são para gente corajosa na vida real. O que aconteceu aqui foi só uma ilusão. A ludibriosa crença de ser possível uma pertença virtual.  (Publicado na revista ESPÚRIA, outubro 2023)