A tua última morada foi o meu coração. À boleia da memória, é aqui que regressas, sempre que te aperta a saudade. Deixo a porta encostada, não precisas de chave, nem de hora para voltar. Bate apenas ao de leve, para que a distração não me apanhe num susto e um grito não espante os vizinhos. Às três pancadas, entra à vontade, estou sempre tua espera. És tu quem me traz flores e até aprendeste a rezar. Num reencontro de mãos dadas, agradecemos ao Pai Nosso e prometemos não chorar no adeus. Quando do teu corpo em brasa apenas restou a cinza do teu nome, guardaram-te como um tesouro num cofre. Fui poupada às romarias de finados e às lágrimas de cemitério. Agora, só choramos de alegria quando o sonho de um abraço quase parece real. Voltas a ter corpo e sorris para mim como antes. Estás na mesma. Eu envelheço mas tu não. Tomo-te as mãos num beijo e sorrio-te de volta, perguntando: Como é que consegues enganar a morte e fugir dessa prisão para me ver? Ludibriando-a, respondes, num piscar de olho. Finjo que me esqueci de um livro ou de um filme e peço licença para o vir buscar. Ela que é toda intelectual, acreditas que até me agradece? Entre suspiros e bocejos, diz que já não suporta mais o tédio ocioso da eternidade.
Dizem-me frequentemente que ainda tenho cara de menina, que ainda sou nova, que ainda tenho a vida à minha frente. Contudo, face à cronologia, é-me inevitável constatar que mais de metade do tempo que me foi concedido já passou. O que me resta já será provavelmente menos. Se isso me inquieta? Não em termos de medo, mais em termos de pressa. Já não é pressa de viver mas de realizar, de me realizar. Apesar de já ter plantado árvores, tido filhos e publicado livros, sinto-me ainda distante da potencialidade plena do meu propósito existencial. O que me falta realizar então? Talvez plantar mais árvores e escrever mais livros, já que a possibilidade de gerar filhos tem prazo de validade e a energia vital para os cuidar vai esmorecendo. Tudo o que me falta fazer parece-me tanto para o tempo que imagino à minha frente. Não cabem tantos livros e filmes e viagens e experiências nas décadas que imagino ainda poder viver. O meu maior conflito interior neste momento é já não ser nova para tanta coi...
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