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O profeta ateu


O meu pai não se chama José, nem sequer acredita em Deus. Mas é o ateu mais cristão que conheço e tem nome de profeta. Homem de grandes virtudes, Eliseu demonstra mais do que diz, cumpre mais do que promete. Podia ser mais generoso a distribuir beijos e abraços mas nem isso é defeito, é apenas feitio. De todos os ensinamentos maiores, devo-lhe a liberdade de escolha e de pensamento. Nunca me obrigou a ser ninguém que não sou, a fazer nada a contragosto ou vontade. Ensinou-me sim a liberdade, sinónimo de responsabilidade, e assim a tenho cumprido. Nunca me impôs habilidades ou religião, curso, namorado ou profissão. Nessa tamanha liberdade de ser, deixou-me uma só condição: se errasse, que soubesse lidar com as consequências. Ainda assim, o desamparo nunca foi castigo e a mão invisível de pai esteve sempre comigo, nas horas de maior aperto. Pai, és um bom homem e um homem bom. Pai, agora grisalho, és um magnífico avô. Pai, na terra és grande como o céu. E aqui és meu Pai, senhor Eliseu.

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Reportagem # 32

Jornal "Dica da Semana", edição regional Algarve, 29 de Janeiro de 2015

FRIDAY EATS

A refeição que pedala a rua à minha frente vai saciar o cansaço de alguém que trocou horas de fome por uns tostões. A energia que sobra é a da ponta dos dedos. Três toques no ecrã e o jantar está pronto. A marmita verde atravessa a cidade, pela força estoica do homem que não fala português. Também não precisa. Basta tocar à campainha e dizer a palavra mágica de significado universal. Num silêncio solene, digno de um requintado mordomo, abre o saco térmico e serve o jantar. O pobre senhor que ganha uns tostões, hoje sente-se um rei. Espreguiçado no sofá, a lambuzar-se num menu cancerígeno qualquer, reencontra um espasmo de felicidade. Ah, como é boa a sexta-feira! Mham 

VERSÃO 4.5

Dizem-me frequentemente que ainda tenho cara de menina, que ainda sou nova, que ainda tenho a vida à minha frente. Contudo, face à cronologia, é-me inevitável constatar que mais de metade do tempo que me foi concedido já passou. O que me resta já será provavelmente menos. Se isso me inquieta? Não em termos de medo, mais em termos de pressa. Já não é pressa de viver mas de realizar, de me realizar. Apesar de já ter plantado árvores, tido filhos e publicado livros, sinto-me ainda distante da potencialidade plena do meu propósito existencial. O que me falta realizar então? Talvez plantar mais árvores e escrever mais livros, já que a possibilidade de gerar filhos tem prazo de validade e a energia vital para os cuidar vai esmorecendo. Tudo o que me falta fazer parece-me tanto para o tempo que imagino à minha frente. Não cabem tantos livros e filmes e viagens e experiências nas décadas que imagino ainda poder viver. O meu maior conflito interior neste momento é já não ser nova para tanta coi...