Avançar para o conteúdo principal

A vida começa agora


A data diz-me que cheguei aos quarenta. Mas o espelho e a balança do tempo não o confirmam. Ainda experimento, vejo e sinto uma estranha leveza. Os anos ainda não me pesam e o que a idade me ofereceu é tanto mais do que a passagem do tempo naturalmente me roubou. Aceitar deixou de ser um verbo de conjugação resignada: agora é sinónimo de sabedoria. Tenho tanto para fazer, tanto para dar, tanto que ainda gostaria de receber. Mas os dias cavalgam a uma velocidade furiosa e eu já só procuro a harmonia suave e perfeita de cada instante. Mais dia, menos dia, mais ano, menos ano, tudo irá conspirar para que a minha missão se cumpra. Se não foi, não era para ser. Se não acontece é porque não tinha de acontecer. Caminho para um tempo no qual até o caos é perfeição, se observado à lupa da serenidade do olhar. A vida não se acalmou. A quietude é que me abraça os gestos, agora fortalecida pelos ensinamentos. Nesta juventude tardia da existência, estabilidade continua a ser um conceito abstrato, tão difícil de concretizar. Amor, família, trabalho e prosperidade são realizações quase incompatíveis. Quando se alcança uma, há outra que nos foge e sempre teremos de correr atrás daquela que nos é prioritária. Ser respeitada por quem sou e pelo que faço é a maior conquista desta idade. Aos quarenta ser feliz é sinónimo de estar em paz. É poder viver pacificamente com as escolhas que se impõem a cada dia. É saber dizer não muitas vezes, sem medo, porque um sim contrariado sempre terá consequências piores. É encontrar a direção espiritual que nos permite assomar o passado e espreitar o futuro, sem desfocar do presente. É praticar a paciência, a resiliência, a persistência, em prol da superação. É olhar fundo para dentro até descobrirmos a nossa melhor versão e a partir da auto-estima nos revelarmos no outro. É discernir antes e depois de tudo e perder o hábito da precipitação. É descobrir e aprender a usar as ferramentas da vida, sem vergonha de falhar e recomeçar sempre que preciso. Para esta nova década da existência, lanço-me um desafio especial: Quero ser mais alegre para ser mais feliz!

Comentários

Mensagens populares deste blogue

Reportagem # 32

Jornal "Dica da Semana", edição regional Algarve, 29 de Janeiro de 2015

FRIDAY EATS

A refeição que pedala a rua à minha frente vai saciar o cansaço de alguém que trocou horas de fome por uns tostões. A energia que sobra é a da ponta dos dedos. Três toques no ecrã e o jantar está pronto. A marmita verde atravessa a cidade, pela força estoica do homem que não fala português. Também não precisa. Basta tocar à campainha e dizer a palavra mágica de significado universal. Num silêncio solene, digno de um requintado mordomo, abre o saco térmico e serve o jantar. O pobre senhor que ganha uns tostões, hoje sente-se um rei. Espreguiçado no sofá, a lambuzar-se num menu cancerígeno qualquer, reencontra um espasmo de felicidade. Ah, como é boa a sexta-feira! Mham 

PERTENÇA VIRTUAL

Apaixonaram-se ao primeiro clique.  No início, tudo tinha a leveza eufórica da novidade. Tudo tinha o ingénuo encanto do desconhecido. Enquanto deslindavam os detalhes virtuosos da vida privada um do outro, em mensagens infinitas, contemplavam-se teclando, trocando imagens e palavras e emojis. Foram dias áureos de expectativa crescente. Quando será o nosso encontro real? A magia começava a desvanecer-se ao surgir a questão. Alguém não deseja abdicar do perfeccionismo platónico. Camuflados na virtualidade somos todos muito bons. Para quê sair do casulo para dar a conhecer o pior de nós? O melhor é encerrar o assunto enquanto ainda paira a beleza inicial. Um vai-se esfumando e saí de mansinho. As respostas chegam cada vez mais demoradas até não chegarem mais. Encontros românticos são para gente corajosa na vida real. O que aconteceu aqui foi só uma ilusão. A ludibriosa crença de ser possível uma pertença virtual.  (Publicado na revista ESPÚRIA, outubro 2023)