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O corredor da vida

O som estridente assinala a rotação de números no painel. Olhos grudados nos caracteres de um vermelho luminoso evidenciam um misto de cansaço e desilusão. Ainda não chegou a minha vez, sinto-os pensar em silêncio. Uma senhora deixa escapar um suspiro. “Eu já cá estou desde as oito”, esclarece com um sorriso conformado de quem não tem alternativa. São onze da manhã dentro de um contentor improvisado, disfarçado de ala de hospital. A sala de espera transborda de gente. São muito mais pessoas que assentos. Não há aquecimento nem televisão, nem a famigerada revista cor-de-rosa que tanto aligeira o passar das horas. Aqui falta de tudo um pouco, menos gente doente. Rostos cansados, envelhecidos pela idade e pelo sentir da dor. Bocas de hálitos pesados soltam suspiros. Estômagos vazios e bexigas cheias não se movem receosos de que a vez lhes passe ao lado. Quando finalmente o número da senha coincide com o que surge no ecrã, há um corpo que se arrasta implorando por quem lhe prolongue a vida. Há luz verde para transpor a porta proibida e um longo corredor para atravessar. Os gabinetes multiplicam-se de ambos os lados. Qual viajante que procura a correspondência entre o número de voo e a porta de embarque, assim o doente procura a sua próxima paragem. Um médico desconfortável aguarda mais um paciente impaciente. Não se lembra do seu nome, nem do diagnóstico. O sistema informático é a sua cábula e um eco de modernidade que contrasta com o ambiente terceiro-mundista de tudo o resto. Sem espaço nem tempo para grandes rodeios, marcam-se mais exames no edifício lá do fundo. E, uma vez mais, os corpos enfermos arrastam-se quilómetro acima, escadarias abaixo, na esperança de um relatório simpático. As consultas invadem já as agendas do próximo ano. “Volte cá para o mês que vem”. E as pessoas voltam. “Se Deus quiser”, acrescentam sempre, na despedida.

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