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O corredor da vida

O som estridente assinala a rotação de números no painel. Olhos grudados nos caracteres de um vermelho luminoso evidenciam um misto de cansaço e desilusão. Ainda não chegou a minha vez, sinto-os pensar em silêncio. Uma senhora deixa escapar um suspiro. “Eu já cá estou desde as oito”, esclarece com um sorriso conformado de quem não tem alternativa. São onze da manhã dentro de um contentor improvisado, disfarçado de ala de hospital. A sala de espera transborda de gente. São muito mais pessoas que assentos. Não há aquecimento nem televisão, nem a famigerada revista cor-de-rosa que tanto aligeira o passar das horas. Aqui falta de tudo um pouco, menos gente doente. Rostos cansados, envelhecidos pela idade e pelo sentir da dor. Bocas de hálitos pesados soltam suspiros. Estômagos vazios e bexigas cheias não se movem receosos de que a vez lhes passe ao lado. Quando finalmente o número da senha coincide com o que surge no ecrã, há um corpo que se arrasta implorando por quem lhe prolongue a vida. Há luz verde para transpor a porta proibida e um longo corredor para atravessar. Os gabinetes multiplicam-se de ambos os lados. Qual viajante que procura a correspondência entre o número de voo e a porta de embarque, assim o doente procura a sua próxima paragem. Um médico desconfortável aguarda mais um paciente impaciente. Não se lembra do seu nome, nem do diagnóstico. O sistema informático é a sua cábula e um eco de modernidade que contrasta com o ambiente terceiro-mundista de tudo o resto. Sem espaço nem tempo para grandes rodeios, marcam-se mais exames no edifício lá do fundo. E, uma vez mais, os corpos enfermos arrastam-se quilómetro acima, escadarias abaixo, na esperança de um relatório simpático. As consultas invadem já as agendas do próximo ano. “Volte cá para o mês que vem”. E as pessoas voltam. “Se Deus quiser”, acrescentam sempre, na despedida.

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Reportagem # 32

Jornal "Dica da Semana", edição regional Algarve, 29 de Janeiro de 2015

FRIDAY EATS

A refeição que pedala a rua à minha frente vai saciar o cansaço de alguém que trocou horas de fome por uns tostões. A energia que sobra é a da ponta dos dedos. Três toques no ecrã e o jantar está pronto. A marmita verde atravessa a cidade, pela força estoica do homem que não fala português. Também não precisa. Basta tocar à campainha e dizer a palavra mágica de significado universal. Num silêncio solene, digno de um requintado mordomo, abre o saco térmico e serve o jantar. O pobre senhor que ganha uns tostões, hoje sente-se um rei. Espreguiçado no sofá, a lambuzar-se num menu cancerígeno qualquer, reencontra um espasmo de felicidade. Ah, como é boa a sexta-feira! Mham 

VERSÃO 4.5

Dizem-me frequentemente que ainda tenho cara de menina, que ainda sou nova, que ainda tenho a vida à minha frente. Contudo, face à cronologia, é-me inevitável constatar que mais de metade do tempo que me foi concedido já passou. O que me resta já será provavelmente menos. Se isso me inquieta? Não em termos de medo, mais em termos de pressa. Já não é pressa de viver mas de realizar, de me realizar. Apesar de já ter plantado árvores, tido filhos e publicado livros, sinto-me ainda distante da potencialidade plena do meu propósito existencial. O que me falta realizar então? Talvez plantar mais árvores e escrever mais livros, já que a possibilidade de gerar filhos tem prazo de validade e a energia vital para os cuidar vai esmorecendo. Tudo o que me falta fazer parece-me tanto para o tempo que imagino à minha frente. Não cabem tantos livros e filmes e viagens e experiências nas décadas que imagino ainda poder viver. O meu maior conflito interior neste momento é já não ser nova para tanta coi...