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O banco do tempo

“O tempo perguntou ao tempo, quanto tempo o tempo tem? O tempo respondeu ao tempo, que o tempo tem tanto tempo quanto o tempo tem”. E por aqui começa hoje a raiz da minha inquietação transformada em desabafo. Hoje apetece-me falar do tempo. Não do tempo que faz lá fora, mas do outro tempo. Aquele que corre, ora a conta-gotas ora a torrentes desenfreadas. Aquele que nasce e acaba connosco, ou que nos perpetua pelas mãos dos nossos filhos. Sinto hoje que o tempo corre mais veloz que noutros tempos. Os dias colam-se às noites e as noites fazem-se dias sem quase me dar conta de ter feito o que quer que fosse. É tudo tão rápido, descontrolado, escapa-me por entre os dedos… Sinto que somos uma espécie de depósito bancário. Só que em vez de dinheiro, depositam-nos um determinado valor de tempo à nascença. E cada qual, bom ou mau gestor, terá de saber aplicar esse valioso bem da melhor maneira possível. O que terei feito hoje de interessante, pergunto aos meus botões? A resposta não vem. Mas eu paro e reflicto. Cumpri com atenção, esforço e zelo todas as tarefas que o dia de trabalho me apresentou. Cumpri parte dos mandamentos de um estilo de vida saudável, ao trocar duas horas de almoço por um banho de ginásio. Mais tarde, já no recato do lar, fui fada. Do toque da minha varinha mágica saiu hoje uma bela sopa que todos apreciaram. Pelo caminho, pilotei um fogão e estive numa amena cavaqueira com as máquinas de lavar e secar roupa. Aterrei sentada numa cama cor-de-rosa, com uma cria aninhada em mim, implorando carinho. Depositei-lhe milhares de beijos aleatoriamente distribuídos por cabelos, testa e rosto. E assim me reabasteci de amor. Para terminar o dia em grande, porque não fazer o que mais gosto? Haverá melhor forma de encontrar um adormecer feliz? Escrevo porque gosto, não porque sei. Sei lá se sei escrever, ou se sou apenas mais uma tonta que tem a mania que escreve bonito. Para ser franca: estou-me nas tintas. Vou escrever o que me der na real gana. Apenas pelo simples prazer egoísta e solitário de encontrar nos meus dias um tempo aprazível, por mais curto que seja o momento. No banco do tempo, não há empréstimos, é tudo pago a pronto. Ou vives agora, ou perdes a viagem. Não se pode poupar para gastar mais tarde. É fazer na hora o que o tempo permite, sem esperar pelo amanhã. Concluo que nada mais podemos fazer com tempo senão utilizá-lo. Pensando bem, podemos tatuá-lo. Deixar-lhe as nossas marcas. Se conseguirmos ser lembrados daqui a cem anos, então teremos vencido a luta. A luta sim, mas nunca a batalha. A batalha da vida, a da vida contra o tempo.

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